pele_na_estacao_santos-imigrante_-_foto_de_franklin_valverde.jpgEstá no ar, pela plataforma de streaming Netflix, Pelé, documentário britânico dirigido por David Tryhorn e Ben Nicolas. É um filme com roteiro bem marcado: centra-se em momentos chave da carreira do jogador: Copa de 58, Copa de 62, decisão do mundial de clubes contra o Benfica, Copa de 66, milésimo gol, Copa de 70 e despedida da seleção em 71. 

Na narrativa exibem-se com comentários over, em contraponto ao trajeto de Pelé, momentos da situação política do Brasil: anos JK, euforia nos anos Jango, ditadura militar, com destaque para o governo Médici. Trata-se, portanto, de um documentário que opõe o jogador genial e o contexto e posicionamento dele frente à situação política do país. Principalmente durante os anos de chumbo. 

  No que os diretores propõem, é uma fita bem-sucedida. Como esperado, exalta o grande jogador; enfatiza, por meio de depoimentos e cobertura da imprensa da época, que ele foi o maior de todos sem discussão. Mas mostra igualmente as fragilidades e temores de Pelé como jogador, assim como o mal-estar por ter de falar sobre política e detalhes íntimos de sua vida.

Pelé, o documentário, foi concebido em dois planos: ele, sentado numa cadeira de rodas, num saguão amplo, fala sobre expectativas quando ainda era adolescente, os momentos como jogador e política, sem intervenção de um entrevistador; e, em contracampo, imagens de arquivo, que ele e os espectadores veem projetadas.

 

 

 

 

Até certo ponto, pelo estado de saúde dele, é um filme cruel: as primeiras imagens, mostram sua aproximação da cadeira de rodas com um andador; seus movimentos são lentos e ele se senta, sem auxílio, com dificuldades. Fico a imaginar o porquê de o orgulhoso Pelé ter aceitado se expor como se expôs. Mas ele o permitiu, e isso para mim é louvável num personagem que reconhecidamente se incomoda ao lidar com situações embaraçosas.

 

Há depoimentos ácidos sobre sua postura política, como os de Paulo Cesar Vasconcelos e Paulo Cesar Caju; este afirma que ele foi o negro servil que abaixa a cabeça para o branco. Há também quem o defenda, como Gilberto Gil e Juca Kfouri; este afirma que sua postura não pode ser comparada a de Muhammad Ali, pois vivíamos numa ditadura e ele se expunha a perigos que Ali não se expôs. Numa frase lapidar de Kfouri, quem viveu uma ditadura sabe o que é uma ditadura.

 

E igualmente há depoimentos desnecessários, como os Fernando Henrique Cardoso e Benedita da Silva, que evidenciam ter de Pelé impressões convenientes e superficiais. Alguns jogadores que atuaram com ele também falam – Pepe, Rivelino, Jairzinho, Brito –, e ficam nos clichês laudatórios.

 

Por envolver nuances de um personagem de tanta expressão, vejo Pelé como um filme que merece ser visto e discutido: o foco não se resume ao futebol, gols e feitos geniais. Muito distante de Isto é Pelé (1974), de Luiz Carlos Barretos e Eduardo Escorel, e de Pelé eterno (2004), de Anibal Massaini Neto. Por isso, decepcionante para quem quer ver entretenimento sobre a carreira do jogador genial.

 

O documentário de David Tryhorn e Ben Nicolas é rico em imagens de arquivo. Muitas delas, que eu nunca havia visto, mostram a intimidade dele tanto quanto a presença dele em situações públicas. Vemos cenas de seu casamento com Rosemeri dos Reis Cholbi, num ônibus com outros jogadores antes de uma partida de Copa do Mundo. Vemos a recepção da delegação brasileira depois da conquista de 70, e ele praticamente se curvando na presença de Médici.

 

Há um dado que, para o espectador estrangeiro menos exigente talvez não importe, mas para nós sim. Pelé saiu de uma pequena cidade do interior não nomeada e foi para Santos, sem ter passado por Bauru. Claro, o roteiro condensa. Mas informa que ele chegou ao Santos pelas mãos de Dondinho, seu pai: Waldemar de Brito sequer é mencionado.

 

O ponto mais controverso do filme é o modo como o episódio com João Saldanha foi retratado. Técnico da seleção que disputou as eliminatórias para a Copa de 70, Saldanha declarou que Pelé não estaria enxergando bem. Por isso, poderia ir para a reserva. A implicância com Pelé teria determinado a queda de Saldanha.

 

Ocorre que Saldanha era filiado ao Partidão e em diversas declarações públicas entrou em atrito com o presidente Médici. Ter um destacado comunista como técnico da seleção naquele momento de ditadura militar era um incômodo. A questão não era a de titularidade de Pelé, pois ele foi titular absoluto nas eliminatórias, mas a sombra do fiasco de 66.

O próprio Pelé, no filme, realça seus temores: contundido em 62 e eliminado em 66, ele temia em 70 não chegar novamente ao fim da Copa: uma nova frustração em Copa do Mundo o apavorava. Havia, ainda, como memória da época, discussão sobre como colocar em campo Pelé e Tostão e não ter um centroavante fixo. O caso é que, num filme bem equilibrado ao tratar do jogador, e de sua posição no contexto político da ditadura, o comunista Saldanha é o vilão. 

 

Fotografia: Pelé – foto de Franklin Valverde.