fotografias_deserdadas_-_reproducao_-_divulgacao.jpgComeço esta resenha com referência a uma crônica sobre o ato de fotografar, que escrevi há alguns anos(http://ondalatina.com.br/index.php?option=com_content&task=view&id=705&Itemid=54) e a lembrança da leitura de Diante da sombra (Confraria do vento, 2018), contos de Ronaldo Entler. Nessa nota de abertura, também, dizer longe de mim talento pra pensar a partir da fotografia. Ainda que, igualmente, a fotografia em si suscite questões que me instigam. O caso de Fotografias deserdadas, de Rubens Fernandes Junior (Tempo D´Imagem, 208 págs.). Assim, menos a pretensão de uma resenha e mais uma breve nota com impressões.

Fotografias deserdadas. A escolha de título por si só instiga. Imagens abandonadas entre outras quinquilharias domésticas com a morte dos ancestrais e recolhidas em sebos, antiquários, bazares e tais. Deserdar, de qualquer forma, talvez contenha certa aura nobre às fotografias encontradas: suponho grande parte das recolhidas por Rubens, e que compõem o livro, tenha sido simplesmente descartada como tralha, velharia que não motivou uma pira em razão de contratempos até legais – o fogo, a fumaça, não o que estivesse em combustão.

 

A inquietação para mim mais notável com o livro em mãos, justamente, é a ausência de legendas. Em algumas poucas fotos uma anotação e alguns dados sobre lugar e época em que foi feita. Ou seja, grande parte das fotos que vemos no livro carece de identificação mínima. Não há como saber data e lugar de grande parte das imagens, o que em meu caso, atiça a curiosidade para pequenos detalhes que me permitam conjecturar. Uma foto com o Cristo Redentor ao fundo exibe um índice evidente…; outra com uma edificação do mesmo modo ao fundo, talvez o Martinelli, e assim um lugar e uma data posterior a 1929…; outra ainda, numa praia recortada e quem sabe em razão das elevações naturais a Baia da Guanabara…

 

Um exercício desafiador a quem se deparar com as fotos de Fotografias deserdadas é, então, a tentativa de reconhecimento de certos índices. Ou, se o reconhecimento for falho, ficar na imaginação, na suspeita de que… Ora, uma foto antiga pode ser um registro histórico, pode trazer a memória de uma época, de um lugar: rua tal por volta de…, e com isso a reativação da lembrança: aqui ficava…; ali antes existia…

 

Na maioria das fotos de Fotografias deserdadas fica essa impossibilidade. Quer dizer: a domesticidade da imagem, cujo sentido intimo é justamente íntimo, trai o sentido da memória: como ter memória no que não se reconhece o que vê? Mas, notadamente por isso, a forte impressão que me causou a citação feita por Rubens Fernandes: “toda fotografia é um enigma”, pincelada de livro de Michel Frizot, título mesmo do livro.

 

Uma foto doméstica, em si tão só significante, não mostra muito além do que se vê. Ao mesmo tempo, perturba porque nela algo além do que se vê; ou o que se vê, um grão de areia na vastidão do deserto. Uma criança numa foto com traje militar faz continência. Atrás dela uma balaustrada. No alto uma legenda: Salve Brasil. E minha conjectura: o ufanismo patriótico da era Vargas pós golpe de 1937 e o Estado Novo…; no traje militar, na continência, o sentido de época além da domesticidade da situação fotografada. Mas, claro, é só por que a imagem me permite, o que implica em possível equívoco, que assim ela me traz a memória de um tempo em nossa história.

 

Rubens Fernandes é um pesquisador consciencioso. Mas, mais que isso, é apaixonado por fotografia. É apaixonado por fotografias antigas. É apaixonado pelo que elas possam nos trazer sobre o sentido de uma época, de um momento, deserdado… É um arquivista de fotos encontradas e no texto que abre o livro revela ter milhares de imagens que encontrou deserdadas e possivelmente condenadas a um fim qualquer sem que voltem a ser vistas. Então, o livro é uma seleta de seu precioso arquivo. Uma seleta que, em mim, deixa a curiosidade pelo que ainda está escondido e que, provavelmente, não será visto em livro como o que nos apresenta.

 

Esse, então, o sentimento mais forte que tive ao ter em mãos Fotografias deserdadas, de Rubens Fernandes Junior. Outros, certo, serão de outro modo tocados…

 

Humberto Silva é professor da FAAP, critico de cinema e membro da Abraccine.