A inciativa da ABRACCINE de organizar votação e publicação em livro de 100 melhores filmes nacionais é, para mim, uma das mais bem sucedidas da entidade. Na sequência, vieram os 100 melhores curtas, documentários, animações e fantásticos. Anuncia-se agora, com o mesmo ponto de partida, os 100 melhores filmes eróticos (?) realizados nos anos 70…, quando com apelo no erotismo circularam algumas das maiores bilheterias de “nosso cinema” (entendo ser essa iniciativa bastante melindrosa e com fronteiras extremamente sensíveis).

Com efeito, lembro da votação da ABRACCINE porque ela de algum modo está na origem (se não cronológica, no impulso) da publicação da Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul (ACCIRS): 50 Olhares da crítica sobre o cinema gaúcho, organizada por Daniel Feix, Fatimarlei Lunardelli, Ivonete Pinto, Mônica Kanitz e Rafael Valles (Diadorim Editora, 228 p.). Composto por quarenta e sete críticos da entidade gaúcha e três convidados, não segue, contudo, o princípio de votação dos “melhores” que orienta as propostas da ABRACCINE: o livro gaúcho é balizado pela impressão que um filme em destaque provocou em cada um dos cinquenta autores.

O resultado, tenho em mãos: 50 olhares sobre “filmes gaúchos” num arco de quase setenta anos de realizações. Como não se trata de uma lista de melhores e sim de escolhas individuais com impressões causadas, no número redondo – 50 olhares/textos – antevejo o quebra-cabeça diante dos organizadores. Para um leitor externo ao mundo gaúcho, então – e assim me ponho –, pode ser despertada certa ponta de curiosidade: a organização de 50 Olhares… segue cronologia que tem como ponto de partida Vento Norte (1951), texto assinado por Roberto Cotta, e de chegada Mudança (2020), assinado por Enéas de Souza; ora, nesse arco de quase setenta anos estes foram os filmes que “mais impressionaram” Cotta e Enéas? ou, os organizadores do livro, antecipadamente, fizeram escolhas, deram sugestões, propuseram que Cotta e Enéas emitissem suas impressões sobre o quão estes filmes são “significativos” para eles mesmo que outros pudessem ser mais “significativos”? Sem dúvida, a apresentação dos organizadores indica procedimentos metodológicos para a confecção do livro, mas neles me parece há uma ambiguidade que ficou no ar.

As questões levantadas (ou minha curiosidade pessoal sobre o momento em que se bateu o martelo sobre este ou aquele filme para este ou aquele autor), bem entendido, não se referem à importância “histórica” e, com isso, ao valor dos filmes; tampouco incide sobre o conteúdo dos textos que li; mas, sim, diz respeito ao princípio impulsionador da organização do livro: o quebra-cabeça para compor quase setenta anos de produção e escolha pessoal de um único filme para um crítico numa escala de tempo tão ampla. O resultado para mim, leitor, é ótimo para os textos de Cotta e Enéas, no caso; não me esquivo, todavia, de registrar que a organização de um livro assim supõe escolhas, decisões, que instigam curiosidades sobre bastidores de sua composição.

Tenho presente que essa curiosidade quanto a escolhas, decisões, fica patente quando, justamente, a chamada dos organizadores na “carta aos leitores” faz ver que que se trata de 50 filmes “produzidos” no Rio Grande do Sul. Aqui, inevitável mencionar uma sutileza: filme produzido no Rio Grande do Sul, filme cujo diretor nasceu no Rio Grande do Sul e filme que tem o Rio Grande do Sul como espaço geográfico de filmagem podem conter obras que escapolem de um conjunto com foco delimitado na “produção local”. Critérios na organização de um livro supõem desafios inevitáveis.

Com respeito a esta sutileza aqui apontada, que pode embaralhar inclusão e exclusão, vejo dois casos-limite: Dois Córregos (1999) e Cão sem Dono (2007). O primeiro, dirigido por Carlos Reichenbach, uma produção paulista de Sara Silveira que já no título remete a uma cidade de São Paulo. Sim, sei, o “paulista” Carlão, nascido em Porto Alegre, pode ser para alguns o melhor diretor gaúcho da história do cinema brasileiro (sem ele, pois, teríamos um livro/ato falho), e Dois Córregos, com locações também na cidade gaúcha de Cidreira, é uma incursão que fez em solo natal. Certo, mas o jundiaense Beto Brant com Cão sem Dono, uma coprodução paulista/gaúcha, adaptado de um escritor paulista, Daniel Galera, seria um filme gaúcho pois filmado em Porto Alegre? O critério de “produção local”, creio, aqui exibe um nó. Insinuo que nesses casos a paisagem gaúcha é determinante para os incluir.

Como realcei, 50 Olhares… comporta casos-limite. Questões de escolhas, decisões, que envolvem bastidores entre organizadores e críticos participantes do livro podem interferir numa seleção com um número redondo previamente estabelecido. E, igualmente, realcei que não se trata de uma lista com os melhores. Portanto, não faria sentido aquilo que em qualquer lista de melhores pode-se especular sobre ausências.

Ocorre que, tenho em mente – eis tão só mais um dado de curiosidade –, fico a imaginar por que nenhum dos que participam do livro foi “impressionado significativamente” por O Quatrilho (1995). Não seria este um filme gaúcho, ainda que seja adaptação de um escritor gaúcho nascido em São Francisco de Paula, José Clemente Pozenato, e filmado no Rio Grande do Sul (Farroupilha, Bento Gonçalves, Carlos Barbosa, Caxias do Sul, Antônio Prado), pois o já falecido Fábio Barreto, o diretor, era carioca? Ora, os paulistas Carlão e Beto Brant não fizeram filmes gaúchos? Uma vez que para alguns Carlão pode ser o melhor diretor gaúcho do cinema brasileiro, não me surpreenderia que para outro tanto O Quatrilho, único filme de tema estritamente gaúcho a concorrer ao Oscar de melhor filme estrangeiro, seja o melhor daquele estado. Mas, mesmo com esse “histórico”, não causou “impressão significativa” nos autores de 50 Olhares…

Não é o caso, óbvio, de me estender nessas meras curiosidades pessoais sobre inclusão/exclusão. Entretanto, confesso, a leitura de 50 Olhares… me levou a rever As Filhas do Fogo (1978), de Walter Hugo Khoury, que tem por locação Gramado, cidade símbolo do cinema gaúcho, e Canela, e que em 2021 ficou em 4º lugar na lista dos 100 melhores filmes fantásticos da ABRACCINE. Esta lista da ABRACCINE, por suposto, é posterior à organização de 50 Olhares… e, convenhamos, realizado há quase cinquenta anos As Filhas do Fogo pode bem ter ficado numa zona de esquecimento… Por isso, nova insinuação: a incursão do paulista Khoury em solo gaúcho com As Filhas do Fogo – quem sabe um filme/ato falho – escapou a uma lembrança que não escapou a Cão sem Dono do igualmente paulista Beto Brant.

Aliás, sobre a lembrança para realizações mais recentes e mais antigas, mais um dado de curiosidade em 50 Olhares…: a quantidade de filmes e o espaçamento temporal. Embora o livro não se proponha a exibir um catálogo histórico da “produção gaúcha”, subliminarmente há marcos históricos que permitem ao leitor fazer especulações sobre momentos de ápice e rarefações.

Entre Os Óculos do Vovô de 1913 e Vento Norte há um hiato de quase quarenta anos. Vento Norte, por sua vez, permaneceu como obra isolada até Os Abas Largas, de 1963. Após Os Abas Largas, a produção permaneceu rarefeita até surgir o inesperado e meteórico Um É Pouco, Dois É Bom (1970), que revela um diretor negro, Odilon Lopez, em passagem tão atordoante quanto fugaz. E assim seguiu lacunar até despontar o celebrado Deu pra Ti Anos 70, que, da experiência em Super 8, anuncia para mim o momento mais efervescente, inventivo e sintonizado com dilemas de juventude de todo cinema gaúcho.

Passada a geração que despontou com o Super 8, a produção cinematográfica gaúcha sofreu com o eclipse dos anos Collor e, como o resto do país, colapsou na primeira metade da década de 1990. Vale frisar então que, com a Retomada na segunda metade da referida década, o cinema gaúcho passou a experimentar, no quesito quantidade, uma regularidade na produção que não havia antes conhecido. Nos trinta anos mais recentes não há praticamente rarefação quanto à realização. Fiz questão de anotar: o ano de 2015 é o ápice, com cinco realizações que “impressionaram significativamente” os críticos gaúchos.

Volto, contudo, às minhas importunas curiosidades. De 2009 a 2020, quando a produção se tornou efetivamente contínua, como os filmes desses anos circularam, como foi a recepção do cinema gaúcho? Boa parte dessa produção, lembrada como significativa pelos autores no livro, transitou no circuito de festivais com premiações destacadas. Ocorre que, assim me parece, fora das circunstâncias propiciadas por um festival não houve propriamente uma aclamação marcante dessa produção. 50 Olhares…, com isso, não deixa de ser um bom motivo para que, com um maior distanciamento no tempo, se possa ter uma apreciação mais consolidada de filmes realizados no último decênio coberto no livro.

Os hiatos temporais, a boa concentração na produção mais recente, estratégias de escolhas para compor 50 Olhares… me conduzem a uma curiosidade final: ter ideia das faixas etárias dos autores do livro. Na edição, isso caberia em poucas linhas, conviria uma apresentação dos autores. Esse dado que faltou, assim penso, traria outro aroma à leitura.

Vejamos, há matizes geracionais que enriquecem a leitura de um livro como 50 Olhares… em razão da pluralidade de visões, da diversidade de experiências, de sensibilidades alocadas num instante temporal de recepção de um filme. Tanto mais quando se tem em vista um livro com “impressões pessoais” com, justamente, um filme em destaque. Exatamente por isso, me impressionou muito a leitura dos textos de Alice Dubina Trusz e Ivonete Pinto, respectivamente sobre Deu pra Ti… e Verdes Anos (1984). Trusz sinaliza para a tenra idade que tinha quando Deu pra Ti… foi lançado e para quando o viu pela primeira vez adulta. Ivonete, por sua vez, efetivamente fez parte da geração sobre a qual ela escreve. Já boa parte dos autores, suponho…, faz parte de uma geração que nasceu com a Retomada do cinema brasileiro.

Tendo ideia da geração a que pertence um ou outro autor, as impressões que um ou outro tiveram sobre os filmes para os quais escrevem podem me dar o sentido das experiências tidas. De fato, depois da leitura de Trusz e Ivonete, fiquei a imaginar as “impressões significativas” que Deu pra Ti… e Verdes Anos causariam hoje em críticos que assinam o livro e que estão na faixa dos vinte ou mesmo trinta anos de idade.