burrinho001.jpgNeste ano em que se comemora o centenário de nascimento de João Guimarães Rosa, ocorre-me lembrar uma das facetas da obra do genial autor de Grande Sertão: Veredas.

Em suas confessadas influências literárias, o escritor mineiro incluía, entre outros, os dramaturgos gregos clássicos, autores de tragédias, especialmente Sófocles. Sabe-se que nas tragédias gregas o Destino assume relevante vulto, não passando os seres humanos de marionetes manipuladas pelas mãos dos deuses.

A propósito, Guimarães Rosa escreveu e fez publicar, no início de sua carreira literária, uma historieta denominada Chrónos kái Anágke (Tempo e Destino, em grego). Mas como apreciador deslumbrado da obra roseana, parece-se que esse aspecto de sua formação literária, a revelar as influências do antigo teatro grego, se manifesta sobretudo no conto O burrinho pedrês, que inicia a coletânea Sagarana. Esse conto, como de resto a totalidade remanescente da obra do eminente autor, encontra-se traduzido para todas as línguas mais importantes do planeta.

Trata-se do relato do transporte de uma boiada por uma comitiva de vaqueiros, da sede da Fazenda da Tampa à estação ferroviária mais próxima, onde os quatrocentos e sessenta bois embarcariam em dois trens com destino ao Frigorífico. Eram ao todo doze vaqueiros, mais o Major Saulo, dono da Fazenda, o qual ficaria com a família na cidade. Os vaqueiros regressariam no mesmo dia, à noitinha, e teriam que vencer de novo as quatro léguas de distância.

A viagem de ida transcorreu regularmente, e Guimarães Rosa, à semelhança de outros grandes nomes da literatura universal, como Dostoiévski, vai entremeando a narrativa central com várias outras histórias secundárias, contadas e ouvidas pelos vaqueiros e por Major Saulo.

O personagem central do conto é o próprio burrinho do título, que por falta de cavalos em número suficiente foi também arregimentado para servir de montaria na comitiva. Na sua insignificância e impropriedade para tanger bois, o pobre animal, já muito idoso e decrépito, é ridicularizado pelos homens do Major Saulo, assim como são ridicularizados os companheiros que o montam. No início do conto, o autor, logo depois de rápidas considerações biográficas sobre o burrinho pedrês, que se chamava Sete-de-Ouros¸ vai logo advertindo: “Mas nada disso vale fala, porque a estória de um burrinho, como a história de um homem grande, é bem dada no resumo de um só dia de sua vida. E a existência de Sete-de-Ouros cresceu toda em algumas horas  —   seis da manhã à meia-noite —  nos meados do mês de janeiro de um ano de grandes chuvas, no vale do Rio das Velhas, no centro de Minas Gerais”.

De forma intercorrente, grandes bátegas de chuva fustigaram impiedosamente os vaqueiros na ida. Já na cidade, a boiada foi colocada nos vagões sob chuva constante. E para a viagem de volta o Destino reservava a todos algo inusitado, pois o Perigo os espreitava na travessia do Riacho da Fome, tornado agora rio caudaloso por conta das chuvas intensas de todo o período.

Já alforriados do trabalho no retorno à Fazenda, a maioria dos vaqueiros estavam bêbados, trazendo muitos, arrolhada e presa à sela, a conveniente garrafa-reserva de cachaça. De todos, naquela noite, morreram oito, bem como morreram os respectivos cavalos, levados de cambulhada e confundidos com troncos e carcaças de bichos mortos no roldão das águas. Salvaram-se dois boiadeiros, os quais, mais prudentes, buscaram melhor lugar e oportunidade para atravessar o rio. Salvou-se também o capataz da Fazenda, Francolim Pereira, para o qual sobrara na volta o burrico Sete-de-Ouros; e salvou-se igualmente o vaqueiro Badu, que no desespero conseguira agarrar-se à cauda do burrinho pedrês. E exatamente Badu, cujo assassinato, por intrigas de ciúme, havia sido planejado por outro vaqueiro, este morto na travessia.

Ao fim e ao cabo da narrativa, pode-se concluir: o burrinho, animal desprezível para conduzir gado, na verdade foi o único que se safou na enchente assassina do Riacho da Fome, livrando ainda de morte certa, com sua sabedoria e jeito, os vaqueiros Francolim e Badu.

A idéia central do conto é a de que, por trás das mazelas e preocupações humanas, está a todo o tempo a Sorte e o Destino sorrateiro a reservar o Inesperado, como faziam os deuses nas antigas tragédias gregas. Bem significativo, aliás, é o nome atribuído ao burrinho pedrês: Sete-de-Ouros. É denominação de uma carta do baralho, e carta muito valiosa, pelo menos no jogo de truque praticado nos sertões das Minas Gerais…

J. D. Oliveira é advogado em São Carlos.     

      

 

 

Ilustração de Fernando D. Valverde