Houve um tempo em que adorei meu pai. Eu era criança, um menino um tanto irrequieto que brincava muito na rua e ficava esperando o pai voltar com algum docinho ou um brinquedo, expectativa quase sempre frustrada.
Na adolescência, fiquei um pouco mais calado e talvez até um pouco tristonho. Comecei a tomar pé das realidades do mundo e fui sendo tomado por um sentimento misto de indignação e medo. Naquele tempo, por razões que só mais tarde eu viria a compreender, comecei a não gostar do meu pai.
Meu pai era um homem magro e aventureiro, barbudo em algumas épocas. Desprendido da família, mesmo quando estava em casa tinha um ar atônito, ausente, distante. Costumava ouvir jogos de futebol em seu rádio de pilha, uma espécie de passaporte que o levava para longe e o desconectava completamente de nós.
Ao chegar à Sampa da garoa, em 1971, foi trabalhar como faxineiro em uma fábrica de eletrodomésticos e morou por alguns anos no número novecentos e tanto da Rua da Mooca, numa espécie de hospedaria, onde hoje funciona, ao que parece, uma serralheria. Embora a rua seja “da Mooca” e seus moradores digam que moram no bairro de mesmo nome, os 1700 metros iniciais dessa rua ficam na região central da cidade e pertencem ao vizinho distrito do Brás.
Meu pai, como quase todo mundo, tinha lá suas idiossincrasias. No entanto, as dele eram um pouco incompreensíveis. Não ganhava mal, costumava ter dois ou três empregos concomitantes (e ainda encontrou tempo, no meio de tanta coisa, de fazer faculdade, tornou-se bacharel em Direito), mas sua disposição para o trabalho era totalmente oposta a sua incapacidade de gerir as finanças familiares.
De desgraça em desgraça, meu pai foi borboleteando pela vida. Não sei se por falta de perspicácia ou por algum sistema inconsciente de autodefesa psíquica, ele não parecia ter marcas das tragédias que viveu na infância nem das trapalhadas na vida adulta.
O jeito desligado de meu pai os tirou de nós muitas vezes. Na infância e começo da minha adolescência, suas longas ausências, sua carga de trabalho e sua boemia o afastaram de mim, da minha mãe e das minhas irmãs. Parecia um hóspede dentro própria casa. Paradoxalmente, sua falta e desorientação eram, de alguma forma, nosso norte.
Talvez a grande lição desse comportamento ausente tenha sido “não levem as coisas tão a sério”, “não se levem tão a sério”, “nada nesta vida é tão sério”. É como se ele nos dissesse que só a utopia, e nada mais, merecesse realmente a nossa atenção.
Meu pai não conseguira praticamente nada do que planejou na vida, mas seu jeito ausente talvez tenha sido uma forma leve e discreta de nos ensinar a não nos conectarmos com a dor, com a chatice, com a burocracia. Talvez ele tenha sido um visionário, um Quixote, mesmo que não tenha nos dado tempo para perceber isso.
Em 2014, publiquei meu primeiro livro jornalístico, O Saber que transforma, cujo trabalho bruto de captação dos dados, de escrita e de edição ficara pronto um ano antes. Meu pai não chegou a ver o livro publicado, mas foi nos meses de produção do livro que a vida voltou a nos aproximar de forma contundente e compulsória. Foi o início da reconciliação: com ele, com o passado, com as dores de outrora.
Mieloma múltiplo, esse foi o diagnóstico depois de dez dias de internação. Meu pai só procurou o hospital porque sua “gripe” estava muito, muito forte. Pensou que o mal-estar físico fosse, no máximo, decorrente de um início de pneumonia. Era, na verdade, o começo de um processo doloroso de tratamentos complexos, quimioterapia, hemodiálise. Naqueles meses, fui amigo de meu pai e ele foi meu amigo.
Durante as visitas que lhe fiz em casa e no hospital, tratei de ser otimista e animá-lo o quanto pude. Nossas diferenças, que às vezes impunham um silêncio sepulcral entre nós, foram deixadas de lado, eu me sentia impelido a falar, a conversar. Sabia que seus projetos, mais que a realidade, mantinham-no animado, vivo, “planejante”. Talvez nisso ele tivesse uma sábia razão. Infelizmente, nem todo o meu encenado otimismo foi capaz de mantê-lo vivo, não foi o bastante. O mal físico era complicado, agravado pela grande demora dele em procurar ajuda médica – ele não gostava de se conectar com a realidade.
Agora, quando mais uma vez o comércio – que pensa mais em lucro que propriamente no amor que esta data que se aproxima, o Natal, suscita- explora nossos desejos de consumo como pretexto para vender, eu me pergunto se por timidez, preguiça ou covardia é que hesitamos em falar de nossas emoções. Creio que o trecho da música da cantora norte-americana Pink que diz “we can learn to love again” (nós podemos aprender a amar de novo) é muito emblemático, ilustra bem tudo o que vivi com meu pai e sua enfermidade, que nos colocou cara a cara novamente de forma tão impactante.
E o começo do fim chegou, melancólico, no início da noite de Natal de 2013, o ano mais difícil da minha vida. Passei a noite com ele no hospital e, no meio da madrugada, cheguei a vê-lo na porta, com aparência saudável, como se não estivesse doente. Era um delírio. Ele, da porta, chamava a si mesmo, na cama, como se o convidasse a ir (ou vir) com ele. A roupa que essa “visão”, esse delírio, vestia era igual à do dia em que foi internado pela última vez, uma camisa xadrez com predominância de preto e de vermelho, uma calça jeans um pouco ruça e um par de tênis marrom.
A manhã do dia 25 de dezembro chegou, o dia de Natal, tristonho e derradeiro. O Natal sempre foi meu calcanhar de Aquiles das datas comemorativas, Papai Noel nunca foi meu amigo, acho que o velhote me detesta e eu nem sei por quê. O Natal, do jeito que as pessoas o conduzem, sempre me pareceu vil, comercial, frio e hipócrita. Quando se é pobre, é a data do calendário na qual a pobreza mais pesa; o insucesso daqueles que não têm a mesa farta nem a família perfeita vem gargalhar na nossa cara.
Limpando gavetas dia desses, encontrei no celular antigo as mensagens que trocávamos na época em que o acompanhava aos hospitais e clínicas. Pai, desce que já cheguei. Já estou descendo, filho. Pai, confia que vai dar tudo certo. Ok, filho, eu te amo. Tudo o que não prestava deixou de existir, e no lugar do vazio ficou o amor. O Natal, para mim, continuará sendo, para sempre, uma data triste, inevitável não recordar meu pai distraído, indulgente, garotão. No entanto, do fundo do coração, acho que já fiz as pazes com isso tudo.