A cubana Celia Cruz é considerada a Rainha da Salsa, ritmo contagiante que dominou – e ainda domina – as pistas latinas de dança do mundo inteiro. Celia era dona de uma voz potente e muito melodiosa, que empolgava a todos e todas que a ouviam e, ainda, ouvem nos inúmeros discos que ela deixou. Celia Cruz nasceu em Havana, Cuba, no dia 21 de outubro de 1925. E morreu em 16 de junho de 2003, aos 77 anos, na cidade de Fort Lee, Estados Unidos. A entrevista, que aqui reproduzimos, foi publicada em 1999 na CHUCHU, como era carinhosamente chamada a revista Churrasco & Churrascaria, da qual fui editor. Confiram a entrevista.
A RAINHA DA SALSA
A cubana Celia Cruz é considerada a Rainha da Salsa. Essa simpática senhora com 75 anos, dos quais quase quarenta deles vividos no exílio em Miami, está sempre de bom humor e com um largo sorriso nos lábios. Sua fisionomia só perde a alegria quando fala da atual situação de Cuba e do regime de Fidel Castro. Recentemente a gravadora Universal lançou o CD “Mi vida es cantar”, que reflete bem o seu estado de espírito, e “Celia’s Duets”, que reúne grandes intérpretes e músicos como Willie Colón, Oscar D’León, Tito Puente, Johnny Ventura e Caetano Veloso.
Celia Cruz iniciou sua carreira no final dos anos quarenta, tornando-se uma das mais populares de Cuba. Seu repertório era basicamente composto de gurachas e mambos. Estudou canto no Conservatório Nacional de Música, na cidade de Havana, onde em 1950 formou com a orquestra Sonora Matancera, um dos melhores casamentos sonoros da música latina.
Depois da Revolução Cubana, ocorrida em 1959 sob o comando de Fidel Castro e Che Guevara, que derrubou a ditadura de Fulgencio Batista, Celia começou a discordar dos rumos que o país seguia, resolvendo exilar-se na cidade de Miami, em 1961, nos Estados Unidos. A partir daí a sua carreira internacional, que havia iniciado anos antes, ganhou um novo impulso passando a excursionar pelo mundo todo.
A chegada dos anos setenta trouxe a explosão da salsa, com ela Celia Cruz tornou-se a principal voz feminina do novo ritmo que mesclava vários sons caribenhos. Em 1987 o “talking heads” David Byrne a convidou para participar da trilha sonora do filme “Totalmente Selvagem” (Something Wild). Anos mais tarde, em 1992, foi a vez do diretor de cinema Arne Glimcher tê-la como atriz em “Os Reis do Mambo” (The Mambo Kings) , numa pequena ponta, além de interpretar três músicas da trilha sonora.
Na sua discografia constam mais de setenta discos, tendo influenciado artistas como Gloria Estefan e Ricky Martin, que admitiu só ter aberto os ouvidos para a música latina depois de assistir um de seus espetáculos. Confira, nesta entrevista exclusiva, porque Celia Cruz é considerada a Rainha da Salsa.
Você é considerada a rainha da salsa. Mas para você o que é a salsa?
CELIA CRUZ – Salsa é o nome comercial que colocaram na música cubana, como ritmo ela não existe. Ninguém pode dizer: “Está é a salsa”, ou melhor, “Estes compassos são de salsa”. Colocaram esse nome porque a nossa música estava ficando para trás. Mas salsa (que em espanhol, significa molho, tempero) não é uma palavra nova, pois já existia a “salsa de tomate” (risos). A juventude, que é quem faz a moda, gostou do nome e a consagrou.
Mas o que é a salsa de Celia Cruz, seria o mambo?
CELIA – Canto de tudo, por isso digo que ela é a música cubana. Na palavra salsa estão agrupados o mambo, a guaracha, o chachachá, a rumba e o guaguancó. Todos esses ritmos fazem parte da música cubana. Agora, quero que você me diga: de que outro país há música na salsa? Não há. Em Porto Rico temos a bomba e a plena, na República Dominicana, o merengue, na Colômbia, a cumbia, ou seja, tudo o que se canta na salsa é música cubana.
Depois que você saiu de Cuba, a música da ilha mudou em alguma coisa?
CELIA – Sim, eles mudaram um pouquinho o ritmo. Hoje não é tão vivo, sendo um pouco mais assentado. Mas também é bom.
O que você acha da música de Pablo Milanés e Silvio Rodríguez?
CELIA – Nenhum dos dois me interessam. Podem ser muitos bons, mas não me interessam.
E o grupo Irakere, o que você tem a dizer?
CELIA – Desses meninos eu gosto, começando pelo bom pianista Chucho Valdés, que o conheço desde pequeno. Inclusive frequentava muito a casa do seu pai, Bebo Valdés, que era quem fazia os arranjos das minhas músicas em Cuba. Conheço também o saxofonista Paquito de D’Rivera e o trompetista Arturo Sandoval, que pertenceram ao grupo. Com eles, sobretudo que já estão deste lado, tenho bastante amizade. Dos que estão lá, há alguns que me feriram, por isso não tenho porque falar deles.
Você já gravou com David Byrne. Isso acrescentou algo para a sua carreira nos Estados Unidos?
CELIA – Foi bom ter gravado “Loco de amor” com Byrne, música que fez parte da trilha sonora do filme “Totalmente Selvagem”, mas isso não significa que me trouxe sucesso. Na época ele foi muito criticado por ter acrescentado som latino à sua música. Esse trabalho que fiz com David Byrne é muito mais comentado pelos latinos, do que pelos próprios americanos, pois não estavam muito de acordo com o resultado. Mas, Byrne não deu a mínima. Ele só faz o que tem vontade (risos).
Você participou de alguns filmes como “Os Reis do Mambo” e “A Família Pérez”. Como está a sua carreira de atriz?
CELIA – Está aí mesmo (risos). No momento não estou fazendo nada no cinema. Quando me chamam, aceito e faço. Mas, quero ressaltar, não estou interessada em fazer e nem peço que me chamem. Agora… se me chamam, eu faço. Sempre é bom fazer algo diferente do que se está acostumada a trabalhar.
Então você gosta de fazer cinema?
CELIA – Sim, gosto. Só que é muito cansativo fazer filmes, quase não se tem tempo para dormir. Por exemplo, em “Os Reis do Mambo” entrava no estúdio às 5h45 da manhã, o tempo passava, chegava às 3h da tarde e ainda não tinha saído. Você se levanta cedo, passa o dia inteiro lá, chega a hora de ir embora e ainda não entrou no set de filmagem. Mas se tiver que fazer, eu faço.
Você vive há quase quarenta anos nos Estados Unidos. Durante esse tempo a música americana teve alguma influencia no seu trabalho?
CELIA – Não, sigo apenas as minhas raízes. Nem penso em gravar em inglês, porque há muito boas cantoras americanas que irão pronunciar as canções muito melhor do que eu.
Mas em “Os Reis do Mambo” você gravou em inglês.
CELIA – Sim, mas eram músicas minhas: “La dicha mia” e “Melao de caña”. Foram traduzidas, mas já havia gravado essas canções por volta dos anos 50.
Certa vez você disse que era convidada para os festivais de jazz porque eles eram muito chatos. Continua tendo a mesma opinião?
CELIA – Não… sou eu quem fica chateada (risos). Para mim são muito cansativos. Mas têm muitas pessoas que gostam e lotam os concertos.
Então, por quê convidam Celia Cruz para esses festivais?
CELIA – Para ser o contraponto. Tudo jazz, jazz e jazz é cansativo, ou seja, me convidam para fazer o que faço.
Vamos falar de grandes figuras da música latina. O que você acha de Beny Moré (1919-1963), o bárbaro do ritmo, cubano que fez muito sucesso nos anos 40 e 50?
CELIA – Beny Moré foi para mim o melhor cantor, o melhor sonero, gurachero, rumbero e improvisador que Cuba já teve. Todo o mundo que conhece esse tipo de música reconhece isso. Cheguei a gravar três volumes em homenagem a Beny Moré, pela Fania Records, sendo que um deles foi com Tito Puente.
Por falar em Tito Puente, o que diz dele?
CELIA – Esse é meu irmão, o conheci em 1952 quando foi tocar em Cuba. Já trabalhamos juntos mais de 500 vezes. Sempre digo que Tito Puente é um cavalheiro no palco. Faz seu espetáculo, deixando para quem vem depois que também o faça, não se colocando como o dono da orquestra. Nos queremos e nos respeitamos muito.
E Bola de Nieve (1911-1971), que lembranças lhe traz?
CELIA – A última vez que vi Bola de Nieve foi no México. Trabalhei com ele uma única vez em um teatro que se chamava Blanquita de Cuba. Bola tinha muitos bons números, além disso era muito simpático. E, como sempre acontece com os feios, sabemos agradar o público (risos).
Dos novos ídolos latinos, que acha de Gloria Estefan?
CELIA – Ela é a minha medio-hermanita (meio-irmãzinha). Gloria é uma garota que sempre me demonstrou seu carinho. Isso vem desde quando gravei “Usted abusó” (“Você abusou”, de Antônio Carlos e Jocafi) com Willie Colón. Lembro que um dia estava em um quarto de hotel, na Costa Rica, assistindo televisão, e ela e seu grupo apareceram cantando essa música. Ao terminar disseram “Essa não é criação nossa neste idioma (o espanhol), é criação de Celia Cruz”. Depois disso nos conhecemos em Miami. Emilio Estefan sempre quis ser meu produtor, só que já trabalhava com Jerry Masucci e com Ralph Mercado (donos da Fania Records). Temos uma grande amizade. Sempre que Emilio e Gloria fazem um evento, eles me convidam. Quando posso, apareço.
Como vê a atual situação de Cuba? Acredita que continuará do jeito que está por muito tempo?
CELIA – Espero que não, pois quero voltar para o meu país, antes que a morte chegue…
Quer dizer que enquanto Fidel Castro estiver no poder, você não volta?
CELIA – Para mim é impossível. Aqueles que quiserem voltar, que voltem. Ele não deixou que enterrasse minha mãe. Ela era a melhor coisa que eu tinha no mundo. Primeiro, porque me deu à luz. Segundo, porque foi quem me incentivou para ser cantora, pois meu pai não queria. Então, já que não me deixaram entrar para enterrar minha mãe, sinto muito, mas não tenho nada para fazer lá.
Fotos: reprodução de capas de CDs.