celso_marconi_-_divulgacao.jpgBiografia e perfil biográfico são duas formas de escrita que permitem ao leitor conhecer a vida das mais diversas personalidades nos campos do saber, da cultura, da política etc. A biografia, claro, resulta de um trabalho denso e que basicamente depende de fontes documentais e ampla pesquisa. Com relação a ela, o perfil biográfico seria algo como o primo pobre, pois dele não se exige o mesmo cuidado, rigor ou procedimentos metodológicos para a obtenção de dados relevantes da vida do biografado, justificativa documental de situações eventualmente controversas. Para o leitor, de modo geral, o perfil biográfico é o resumo da biografia, um olhar, digamos, de esguelha.

 

Há um ponto, no entanto, que reputo no perfil biográfico e que entendo ser da mais alta importância. O tom da escrita e a facilidade de circulação, que aqui deve ser entendida como a importância de fazer circular para um público amplo uma visão em aspecto de uma personalidade. Nesse sentido, uma biografia muitas vezes falha pela impossibilidade de oferecer uma visão totalizante do biografado, deixando arestas ou simplesmente estimulando polêmicas. O tom da escrita, por sua vez, diz respeito à sensibilidade do autor para estabelecer um ponto de partida, e com este, recortar apropriadamente momentos da vida da personalidade retratada.

 

Tenho em mãos Celso Marconi, o senhor do tempo (Cepe Editora, 184 págs.), perfil biográfico de, claro, Celso Marconi, importante intelectual, crítico, programador e curador de cinema e ativista cultural pernambucano, escrito pelo jornalista também pernambucano Luiz Joaquim. E o primeiro aspecto a ser destacado no livro é seu ponto de partida. O autor equilibra descrição do ambiente cultural em Recife no qual Marconi atua, desde a década de 1940 até hoje (o livro celebra seus 90 anos em plena atividade), e pinceladas de sua vida pessoal, capitais para o leitor entender suas escolhas e por conseguinte inserção na vida pública em quase sete décadas. Portanto, dos anos de Vargas no poder a Bolsonaro.

 

Tendo esse ponto de partida como diretriz, para quem queira conhecer o ambiente cultural recifense nos momentos citados tendo por impulso uma de suas personalidades mais marcantes e atuantes, o livro de Luiz Joaquim satisfaz muito bem esse anseio. Trata-se, então, de uma obra organizada de modo a se ter em paralelo a trajetória pública e pessoal de Marconi e o ambiente em que ele se formou, atuou e atua profissionalmente, militou e milita. Ou seja, conjuga a curiosidade que a vida privada desperta com o ambiente vivido. E no caso, essas duas dimensões, de maneira intensa e, por que não, cheia de ziguezagues, como a história do Brasil.

 

Luiz Joaquim é bastante cuidadoso e percuciente ao escrever sobre a origem familiar de Marconi. Num livro de perfil biográfico, ele sintetiza e tem êxito ao localizar as pessoas de seu ambiente familiar: origem social, profissões e fontes de sustento. Assim sendo, dá ao leitor elementos para que ele não só se situe no mundo familiar de Marconi, mas que perceba em sentido amplo a cultura familiar de um determinado seguimento social médio de Recife. O que implica num sentido mais amplo compreender a tênue fronteira entre a vida pública, laços familiares e formas de se manter num padrão social. Um tanto, pois, de sociologia do comportamento.

 

Passada a vida doméstica, a vida pública. E então os estudos, as leituras, a opção por estudar Filosofia depois de tentativa frustrada no Direito, a inserção no ambiente intelectual, o trabalho no jornalismo, o ativismo cultural, as realizações no cinema, as viagens e, evidentemente, o engajamento político (no caso, a filiação ideológica à esquerda do espectro). Na descrição do ambiente de formação de Marconi, para quem é do eixo Rio e São Paulo (meu caso pessoal), encontrar nomes como o da pedagoga e filósofa Maria do Carmo Tavares de Miranda, cuja importância para além da formação do retratado merece especial atenção.

 

O mundo intelectual paulista e carioca, no mais das vezes, se fecha em si mesmo ou olha de modo provinciano para o “estrangeiro”. E assim não se atém ao que ocorre em outros cantos do país. Não houvesse qualquer outro valor nesse livro dedicado a Celso Marconi, a sensibilidade de Luiz Joaquim para realçar a importância de Maria do Carmo, sua influência naquele ambiente cultural e intelectual, bastaria para fazer dele uma referência para quem queira ver além dos guetos intelectuais estabelecidos no eixo Rio e São Paulo. Não que ela tenha sido uma filósofa e pedagoga notável e despercebida, mas para quem tem Paulo Freire como horizonte notar como ambos foram formados na mesmo atmosfera impregnada de religiosidade cristã. Na mesma atmosfera em que Celso Marconi desponta.

 

Assim, no ambiente intelectual recifense, Marconi é uma figura catalizadora. Sua formação em filosofia lhe dá suporte para que possa intervir intelectualmente nos mais variados campos da cultura e em diversos níveis: na cultura popular ou na erudita, nas artes plásticas, na música popular, no teatro ou no cinema. Isso tanto como jornalista cultural, com destaque para o cinema, quanto como programador, curador de cinema e cineasta (ele é um dos impulsionadores do movimento Super-8 na década de 1970). Temos então, pela maneira com que Luiz Joaquim o retrata, uma personalidade agregadora, absorvente, com enorme capacidade de articulação, imersão e que, por isso, catalisou e seduziu muitos ao seu redor. O cinema pernambucano das últimas décadas, provavelmente o mais fértil do país, tem nele uma figura emblemática.

 

Marconi, importante ressaltar, não se impôs por se destacar numa área específica – nas artes plástica ou mesmo no cinema, por exemplo –, mas porque soube como poucos na cena recifense transitar e, com muita acuidade, se envolver de modo pregnante nos acontecimentos marcantes no ambiente cultural e intelectual de Recife ao longo de mais de sessenta anos. Por causa dessa longevidade, não sem um quê de provocação, o tempo, palavra chave na filosofia heideggeriana, como pedra de toque no título do livro. Para Heidegger, o tempo é um está-aí, pois chamamos passado a um ente que já não está-aí, e o futuro a um agora-ainda-não, mas depois sim.

Humberto Pereira da Silva é professor da FAAP, crítico de cinema e membro da Abraccine.