engraxataria_-_foto_de_ana_claudia_amaral.jpgRegião conserva charme e algumas profissões já quase extintas nos bairros

“Olá, bom dia, entrem, entrem, por aqui, por aqui”. Quem passa pelo número 359 da Rua São Bento inevitavelmente ouve essa frase em meio ao burburinho dos transeuntes. Quem faz o convite é o Sr. Milton, ou melhor, o Palhaço Almofadinha, que é responsável pela divulgação e propaganda do restaurante self-service São Bento Grill, localizado no segundo andar de uma galeria comercial.  “Subam, subam, por aqui, por aqui, por gentileza, por gentileza”, convida o esfuziante e reiterativo Almofadinha.

A apenas 100 metros de distância, homens uniformizados chamam a atenção em uma praça. Diferentemente do solitário palhaço, esses homens, que lembram um miniexército, chamam a atenção pela postura séria, um tanto sisuda. No entanto, bastam alguns passos e um olhar mais atento para algum deles disparar à queima-roupa: “graxa aí, chefe”?

 

Trata-se do grupo de engraxates do Largo do Café, cujo nome oficial é Praça Antônio Prado, situado em frente ao prédio da BM&F/Bovespa (Bolsa de Mercadorias & Futuros / Bolsa de Valores do Estado de São Paulo), no encontro das ruas João Brícola, XV de Novembro, São Bento e Avenida São João.

Engraxate há 13 anos nesse peculiar endereço da cidade, Valdevino Frutuoso, 47, relata um pouco de sua história. Em seu local de trabalho, um coreto adaptado que lhe serve de abrigo, ele conta que há 3 anos é o “dono do ponto”, pois comprou os direitos de um antigo engraxate que se aposentou, depois de ter pagado aluguel por 10 anos. Porém, perante a prefeitura é a BM&F a responsável por conservar as instalações.

Em 1986, o então prefeito Jânio Quadros, atendendo a uma solicitação dos engraxates do centro, cedeu a eles o “ponto do Largo” (do Café), como é conhecido desde o séc. XIX. Segundo os trabalhadores do local, a presença de engraxates ali é anterior à instalação BM&F, em 23 de agosto de 1890.

Ao longo de seu relato, Seu Valdevino, como é conhecido, exalta os pontos positivos e minimiza os negativos. “Depois que acabou o pregão da bolsa, o movimento caiu muito. Mas como o prédio é importante e ainda frequentado por políticos, não perdemos toda a nossa freguesia”, explica. “Além do mais, em outros lugares quase não tem mais engraxate; aí vem gente de toda a cidade para engraxar ou consertar seus sapatos com a gente”.

O horário de trabalho de seu Valdevino e sua equipe costuma ir das 7h até as 19h, mas depende do movimento. Em dia fraco, com chuva, eles saem mais cedo. Se o movimento estiver bom, eles podem esticar até as 20h, principalmente durante o horário de verão.  E os dias de sol depois de um período de chuva costumam ser os de maior movimento. 

Também há oscilação brusca no movimento de um mês para o outro. Janeiro costuma ser fraco, mas fevereiro é sempre muito bom e um mês acaba “pagando o outro”. “Tirando uma média, dá pra tirar de R$ 1.500,00 a R$ 1.600,00 por mês”, calcula seu Valdevino.

Dentre os políticos que “costumam engraxar” no local estão o vicegovernador Guilherme Afif Domingos, o governador Geraldo Alckmin e o ex-governador José Serra. “O Alckmin é muito simpático, mas o Serra é mais reservado”, explica o sorridente Valdevino.

Devido à queda do movimento gerada pelo fechamento do pregão, há alguns meses o grupo conta com um sapateiro na equipe, o Sr. Jusmar, encarregado de pinturas e consertos de calçados e mestre no ofício desde 1978, quando tinha 14 anos.

Em meio ao entra-e-sai de gente e o vai-e-vem dos pedestres, o jornalista da Agência Estado, Alessandro Freitas, responsável pela cobertura da área de Economia da BM&F e frequentador do Largo do Café, diz que já recomendou o serviço das engraxatarias do largo a vários amigos e conhecidos: “O preço é bom, apenas R$ 6,00. E a gente ainda tem direito à revista!”

O jornalista conta também que certa vez um chefe seu queria comprar um sapato novo. Mas, ao ver o sapato de Alessandro renovado após uma engraxada no Largo do Café, acabou mudando de ideia e preferiu que lhe engraxassem os sapatos velhos. E saiu muito satisfeito com o serviço e com a economia, já que a compra ficou para depois.

O Sr. Ariel, outro habitué das engraxatarias do Largo do Café, não poupa elogios à equipe do Sr. Valdevino: “São todos muito simpáticos e o serviço é excelente. Venho aqui há anos!”, explica ele.

A equipe, formada por Valdevino, Jusmar, Diego e o jovem Fernando Augusto, de apenas 18 anos, parece feliz com sua atividade. Apesar de Valdevino ter tirado férias pela última vez há seis anos, em 2005, e por apenas 15 dias, não demonstra cansaço. Ao contrário: o que se vê é alguém feliz com o que faz e habituado aos altos e baixos da profissão.

Seu Valdevino, mineiro de Belo Horizonte, termina seu relato de forma agradecida e feliz: “Nós temos um banheiro exclusivo na Bovespa e eles cuidam da casinha” – o coreto adaptado onde ficam os engraxates. “A Bovespa é uma mãe para nós!”.     

Perde-se por um lado, ganha-se por outro

A Lei Cidade Limpa, em vigor desde o dia 1º de janeiro de 2007 na capital paulista e conhecida popularmente como “lei do Kassab”, trouxe dissabores e irritação a muitos comerciantes da cidade além de, em alguns casos, prejuízo financeiro com a aplicação de multas. No entanto, nunca falta quem saiba tirar partido dos revezes.

É o caso do artista circense Milton Marques, que mora na capital desde o final dos anos 80, quando conquistou seu DRT (*), e que viu na lei do Kassab uma boa oportunidade de revitalizar sua carreira.

Milton, ou palhaço “Almofadinha”, nome artístico pelo qual gosta de ser chamado, trabalhou na TV, tendo feito incursões em programas como Palhaço Tic Tac, na extinta TV Manchete, e Mulheres, ainda no ar pela TV Gazeta.

Depois dos vários altos e baixos que teve na carreira artística, o São Bento Grill abriu novas oportunidades para Milton. “Como a lei do Kassab proibiu o uso das placas e o restaurante fica no terceiro andar da galeria, os donos tiveram medo de que o movimento caísse. Aí tiveram a ideia de me chamar para eu fazer o trabalho de captação das pessoas que passam pela rua. Eu as convido para entrar e lhes indico o caminho. Para mim, a lei do Kassab só trouxe benefícios”, comenta satisfeito.

Certos profissionais, ao perceberem que sua profissão está em perigo de extinção ou muito restrita a determinados públicos, lugares, ou meios, podem melhorar a situação e tomar medidas que consigam revitalizá-la. Ao contrário de uma língua, que quando morre leva consigo o que de mais precioso um povo tem, as profissões não morrem, apenas evoluem. Exemplos disso são os casos de Valdevino, que diversificou os serviços de sua engraxataria, e o de Milton, que viu na aplicação de uma lei impopular a oportunidade de realavancar sua carreira. 

Foto de Ana Cláudia Amaral.

 

(*) Registro profissional obtido na Delegacia Regional do Trabalho que regulamenta algumas atividades profissionais ligadas aos espetáculos, como atores e modelos.