porta-velas_-_franklin_valverde.jpgFaço aulas de cerâmica há cerca de três anos. Uma vez por semana atravesso um portal e entro em outra dimensão. Ali, em um ateliê montado em um puxadinho, em um bucólico quintal de uma casa que resiste/sobrevive em meio às aberrações de sei lá quantos andares que têm brotado do chão na Vila Romana, me esqueço de nossas misérias. Durante três horas ocupo minhas mãos, meus pensamentos e minha energia em dialogar com o barro, moldá-lo, esperar seus tempos, respeitar sua memória, suas possibilidades e me conformar com resultados às vezes bem diferentes do que meu desejo projetara, quebras e perdas incluídas.

 

Um mês atrás, neste Brasil de agosto/setembro de 2018, a professora nos fez uma proposta: desenvolver uma peça a partir do tema equilíbrio. Achei na web um porta-velas que trazia o tema embutido não em uma forma que desafiava as leis da Física, mas em linhas curvas que se projetavam desiguais, desalinhadas mas equilibradas.

 

Não domino o torno, aliás, lhe tenho medo ainda. Minhas aulas em nada se parecem às cenas protagonizadas por Demi Moore em Ghost e que muitas e muitos têm na memória. Se soubesse como levantar uma peça, uniforme e lisinha, a partir de um pedaço de argila que roda em uma placa sob o comando de meus pés, a execução do que escolhi seria bem mais fácil.

 

Mas minha professora, a gentileza e a delicadeza em forma de gente, é daquelas que nos empurram pra frente e nos fazem esquecer nossas limitações: “se é essa a peça que você quer, é essa a peça que vamos fazer”. E nos lançamos à empreitada de construir com técnicas de modelagem um porta-velas ovalado, oco, com uma grande abertura arredondada na frente, cujos lados tinham alturas diferentes.

 

Vou poupar os detalhes da trabalheira. Na segunda sessão que dedicamos ao dito cujo, enquanto o manipulávamos, surge diante dos nossos olhos – ó, horror dos horrores – uma enorme rachadura marcando a peça verticalmente

 

– “Ai, não!!!!”

 

– “Putz!”

 

– “Tem jeito?”

 

– “Tem. É superficial, vamos remendar.”

 

E lá vamos nós: cobrinhas de argila, barbotina, espátulas, mãos experientes (não as minhas) et voilà: nem se percebe o remendo. Volta o porta-velas para o quarto de cura (sim, é esse nome: um quarto onde as peças ficam secando lentamente).

 

Aula seguinte, 8 de outubro de 2018. Devastada internamente, atravesso meu portal. Desembrulho a peça, aparentemente aceitara o remendo. Duas mexidas e eis que surge A RACHADURA. Exibe-se triunfante e desafiando nosso pseudopoder de fazer emendas e evitar a fenda ou a quebra irremediável.

 

Minha professora não se fez de rogada. Ignorando meu desânimo – e a insistência da peça em se desunir –, diligentemente repetiu com paciência, determinação e amorosidade o que fizera uma semana antes. Fiquei parada ao seu lado, observando seus gestos, carinho em corpo machucado, alisando a peça de forma delicada mas firme, a mão indo e vindo na direção contrária ao sentido da fenda. Muito provavelmente em pensamento ambas lhe rogávamos: “vamos lá, aceita o remendo, não racha de novo, não…, a gente já fez tanto por você, colabora, vai…”

 

Meu porta-velas está lá no quarto de cura. Não sei o que encontrarei na próxima semana. Se estiver inteiro, ainda deverá sobreviver a duas queimas, a segunda a uma temperatura que pode chegar a 1.300°. Tudo pode acontecer.

 

Façam suas interpretações.

 

Ilustração: Franklin Valverde