Abriu o caderno de notas. Às vezes, quando no ócio, folheia o caderno ao acaso. “Na sessão, com o psicanalista em pose, empostação da voz e trejeitos que se servem à caricatura, ouço: o que aconteceu? E lhe respondo: todo psicanalista é embusteiro; estou aqui no escuro; você é lacaniano, freudiano, laplanchiano, reichiano…? O que você é? O que você acha que é? O que você tem a dizer sobre Jean-Bertrand Pontalis? Devo, eu, confiar em você mais do que confiaria em um padre pedófilo para quem eu ali no confessionário estaria me confessando e assim cumprindo o sacramento da penitência?”. Leu a nota e lembrou desta ter digitado um esboço de crônica para publicação no Onda Latina. Queria retomar a nota avulsa. Reelaborar o que havia esboçado tão só. Repensar a forma, a pontuação, a disputatio entre terapeuta e cliente, as palavras e as coisas, a causa final… Estranho, a nota avulsa, entre tantas notas no arquivo do computador, não encontrada lhe deixou impressão de jamais ter sido escrita… Na lembrança, ou na imaginação, pois diante da incerteza, a conversa com o terapeuta:

– Esse não é o momento, nem o lugar, para essas questões…

– Sim, sei; aqui é onde devo mentir? – o dr. me faz uma pergunta e respondo; ou o dr. pede para eu mentir?

Não consegue, de qualquer modo, ter certeza de que não a teria escrito. A redação, isso lhe parece certo, poderia ter sido outra:– Sim, sei; aqui é onde não devo mentir? – o dr. me faz uma pergunta, respondo e, ao responder, estou mentindo?

Não desistiu, continuou a procura porque não conseguia reelaborar o que supõe escrevera. Voltou ao computador. Insistiu. Tenta todos os caminhos que sabe – tentativa e erro – para encontrar a crônica perdida. Tem frustradas, contudo, todas as tentativas:  até, na lixeira, o arquivo “Anotação solta”, pois leu ao tentar abri-lo: “Não conseguimos encontrar seu arquivo. Ele foi movido, renomeado, excluído?”. Ok, clica Ok… Nada… Removido, renomeado, excluído foi o arquivo…; não sabe quem, nem o que, não obstante… “Não gostei do que escrevi. Crônica. Diálogo. Acho me perdi na escrita. Melhor deixar hibernando. Acho que o Machado deve sair. Nada de Simão Bacamarte. Manter Faulkner. O som e a fúria. Mas, e o final? Também devo cortar. Não é o caso”. Folheia o caderno e essa nota encontrada mais adiante nos escritos desorganizados sem datação, parece se relacionar com a crônica perdida na memória do computador.

A dúvida persistia e ele travou quanto à possibilidade de escrita, da escrita sobre jogos de poder, sobre o limite da paciência, sobre a atração pelo dinheiro e o charlatanismo das ciências e do positivismo com seus esquemas, pseudoconceitos e lunáticos paradigmas, sobre as aparências na vida social do terapeuta burguês, em seu confortável consultório em Perdizes rua Monte Alegre, nº…, frente a um inconveniente cliente numa sessão de psicanálise.

 

Ilustração: Franklin Valverde