“Mistérios da meia noite, que voam longe, que você nunca, não sabe nunca, se vão, se ficam, quem vai, quem foi”, e o talentoso músico Zé Ramalho foi um dos muitos que já tiveram a noite como inspiração, esse período em que sai do dia o sol e entram em nós a expectativa e a imaginação.
O fascínio da noite é secular, talvez porque a falta de luz solar tenha subjugado a humanidade durante milênios e milênios. No entanto, a tecnologia de Thomaz Edison permitiu ao homem poder se aventurar pelos confins e pelos arrabaldes, pelas planícies, planaltos e montanhas, pelos interiores das cidadelas e pelas esquinas boêmias das megalópoles, livre e independente da luz do astro-rei.
Na noite de uma cidadezinha do interior ou da periferia de uma grande cidade, existe a certeza de que nada está acontecendo, de que o mundo lá fora entrou num período linear de paz e quietude, como se a noite fosse apenas o não-dia, a não-ação. Ou, ao contrário, tem-se a sensação de que tudo pode estar acontecendo, tanto de ruim quanto de bom: assassinatos, estupros, assaltos, perseguições, mas também beijos ardentes, corpos nus, risos, sussurros de prazer, som alto da “vitrola rolando um blues, tocando B. B. King sem parar”.
Para uma criança de um bairro remoto de uma metrópole, é necessário inventar uma noite. O sol vai apagando a sua luz, e há, numa noite de fantasia e de mente vivaz, a expectativa de que o dia que se aproxima trará algo de bom. Essas invenções da mente, combustíveis da insônia infantil, são uma espécie de antessala do sono e do sonho. O onírico é necessário e quase sempre maravilhoso, digo-o por experiência.
O dia representa o mundo linear, cartesiano. O dia repele os mistérios, o horário comercial é da burocracia e da chatice. Portanto, é na noite que moram os grandes momentos das possibilidades mais inusitadas e arrebatadoras.
Na noite, podemos encontrar um grande amor. Na noite, podemos perder um grande amor. No meu caso, as pessoas mais queridas e especiais da minha vida nasceram de noite, bem próximos, pouco antes ou pouco depois, das doze badaladas noturnas do relógio, seres noturnos, notívagos, taciturnos – pulos do gato da minha história pessoal.
Chamada telefônica depois das duas da madrugada? Quase nenhuma ligação nesse horário é coisa boa. Se for, que sorte! Porém o mais provável é que seja desgraça, gente bêbada, trote, ex-namorados chatos ou até pedido de dinheiro emprestado. Se a ligação for a cobrar, então, nem se fala.
O período noturno tem grande importância mesmo para os de ânimo matutino. Para eles, que passam incólumes pelos efeitos estimulantes do luar, a noite deve inspirar os sentidos a abraçar o silêncio que há sob a luz das estrelas, o corpo a repousar na quietude, a respiração a embalar num ritmo mais calmo que o do dia, para que esses madrugadores estejam prontos para recomeçar a roda da vida na data seguinte, quando pardais e corruíras virão anunciar o amanhecer e o novo despertar
Ilustração: Franklin Valverde