a_espera_-_franklin_valverde.jpgMinha aluna novamente atrasada. Pois é, já 20 minutos passados. Acho que ela vem. Há atividade a ser feita, pois; ela não parece irresponsável e faltar com um trabalho a fazer. Há também, bem sei, humores indecodificáveis nos mais banais gestos humanos. Não seria, visto não ter a melhor expectativa do que as pessoas dizem que farão, surpresa ela perder mais uma semana de aula. Faz parte de certo rito estranho, nesse estranho mundo de situações conflituosas”. 

Enquanto o professor escreve, há de se notar, o tempo passa. Não há como não ser assim. Sim, passa o tempo e a aluna não chega.

 

“Nesse instante de linhas aqui garatujadas, mais 10 minutos. Somado o tempo total, meia hora de atraso até agora. Uma única aluna resta dessa turma. Isso, essa situação curiosa, me traz à lembrança um caso a ser descrito por Kafka. Uma aluna numa turma que já teve três alunas. As outras duas, por razões pessoais, deixaram as aulas. A que restou, contudo, tão logo as outras duas oficializaram desistência, não mais assistiu aula. Não obstante, vi-a em ocasiões diversas e ela, sabendo ser a única restante, e que, portanto, sem ela não haveria aula, me garantiu presença. Assim ocorreu ontem, quando a vi de relance e lhe disse que hoje haveria atividade para avaliação e ela, com ar jovial e sem expressar qualquer sentimento de falta pelas ausências nas aulas anteriores, garantiu-me com largo sorriso nos lábios que viria preparada para a atividade”.

 

Ele olha o relógio e mais 10 minutos se passaram. Na soma, agora mais de 40 minutos de atraso.

 

“Quando se passara 20 minutos, tinha em mim a mais forte convicção de que ela não faltaria. Mas agora já não tenho tanta certeza. Mantenho-me, contudo, a espera e suponho que ela virá, mesmo com grande atraso. Na verdade, hoje na cidade, aqui próximo da faculdade, haverá um jogo de futebol importante para uma das infindas taças disputadas por times brasileiros. O trânsito lá fora, como intui em minha chegada exatamente uma hora atrás, está terrível. Ela, claro, pode estar no insano tráfego dessa cidade que para quando há eventos importantes e quando não os há também. Mas, certo é, cheguei no tempo que imaginara chegar e ela, agora, soma mais 10 minutos de atraso”.

 

O professor segue na sala, sozinho, com um caderno sobre a mesa, a caneta e estas anotações.

 

“A partir do momento em que vi que ela se atrasara 20 minutos depois do início da aula, comecei a registrar isso que aqui escrevo. As anotações se seguiram, ocupam agora a terceira página de meu caderno de notas. No começo, nada havia que pudesse imaginar que ela faltaria. À medida que fazia as notas, olhava para o relógio e registrava compulsivamente. Assim foi o que fiz 10 minutos depois; assim foi que fiz quando se passaram mais 10 minutos e assim voltei a fazer mais 10 minutos passados. Agora os registros se avolumam e ela ainda não chegou. Nessa sequência de tempo a cada 10 minutos meu relógio registra mais 10 minutos e ela não chegou. Assim, mais uma vez diante da soma e um número redondo: uma hora exata de atraso”.

 

Certo, com uma hora de atraso e ele bem pode pensar que novamente a aluna não mais virá. É a quarta semana seguida que ela não vem para a aula.

 

“Sim, já uso o verbo vir no tempo futuro anteposto por uma negativa. Há o jogo, o trânsito lá fora, a cidade que nunca se cansa de cansar os habitantes com a tênue possibilidade de garantir que se possa chegar num lugar em tempo. Há, ainda, muitas e improváveis variáveis. Tantas variáveis há que seria, no mínimo, leviano fazer julgamento. Eu próprio, num dia de chuva torrencial, fiquei preso no trânsito para uma aula da turma dela e só aqui cheguei com 40 minutos de atraso. É certo, sim, que não se pode deixar de lado qualquer variável, por mais insensata e insignificante que possa parecer num primeiro momento. Contudo, olho mais uma vez para o relógio, passaram-se mais 10 minutos. Estou já, sem parar de escrever, há 50 minutos. Sinto leve dor nos dedos e, agora, fiz breve pausa e os estiquei”.

 

Já havia feito anotações no diário, quando chegara à faculdade. Há nele um hábito que o toma e que se repete com religiosidade: chegar à faculdade, parar o carro no estacionamento e esperar o momento da aula escrevendo no diário. Misantropo, causa-lhe desconforto ver as pessoas e, por isso, apenas sai do carro para assinar o ponto e se dirigir diretamente para a sala de aula. Na sala, aguarda os alunos que quase nunca estão no horário.

 

“Assim eu faço: fico no estacionamento e escrevo no meu diário. Devo considerar também que hoje, na correção de uma monografia de uma aluna de outra turma fiquei exatas 6 horas na frente do computador. Ou seja, meus dedos estão doidos de tanto exercício. Tanto mais quando, agora, noto ter já se passado exatamente uma hora desde o início destes registros. Agora, então, ela está 80 minutos atrasada. Ela, que gosta de cinema, podia pensar que esse é um tempo para uma película de Bergman ou de Godard. Ambos, com filmografias profícuas, faziam filmes rápidos, com uma trama desenvolvida em 80 ou 90 min. Não muitos filmes desses dois cineastas superaram os 90 min. de duração. Assim, bem posso imaginar que, o que agora não mais considero atraso e sim ausência, esse tempo, que agora se aproxima dos 90 minutos seria o tempo de projeção de um Bergman ou de um Godard. Em mente, nesse instante, tenho em vista Pierrô, Le fou. Um Godard que tanto me agrada”.

 

A aluna não chegou para a aula. Sim, ela, como o professor não pensaria o contrário, novamente faltou. Na verdade, aproxima-se agora, passada mais de hora e meia, o fim do tempo regulamentar que lhe cabe esperar oficialmente e decretar sua falta. Agora, não se trata mais de espera da aluna em mais um dia faltoso e sim que mais 10 minutos e ele não precisa mais ficar na sala esperando-a.

 

“Mais 10 minutos e faço o registro oficial de mais uma falta. Como escrevi logo no começo deste registro, algo com um matiz kafkiano: o agrimensor que chega para trabalhar no Castelo e… E em certo sentido, sinto mais uma aula com uma única aluna como se fosse um estímulo para escrever a respeito de situações absurdas. Um absurdo com um quê de variáveis de que nada sei sobre o dono incógnito do Castelo e toda uma situação tão absurdamente improvável. Lá fora, ouço rojões que estouram, buzinas de carros, vozes e mais vozes de torcedores antes do jogo. Eu aqui, na sala, com o olhar no relógio espero o tempo passar e esse tempo que passa enquanto escrevo cada vez mais próximo de parar e dar por encerrado mais um dia de trabalho na faculdade. Dia em que, mais uma vez minha única aluna não compareceu. E eu fiquei, 20 minutos depois de notar que ela estava atrasada, a registrar, registrar… e registrei isso que agora, exatamente agora, paro de escrever por exatos 85 minutos num fluxo contínuo, ininterrupto. Quase um filme de Bergman… ou, talvez, de Godard”.

 

Ilustração: A espera – Franklin Valverde