stop_violence_against_women_by_franklin_valverde.jpgA falta de leitura traz consequências sérias. A pior delas é a perda da visão de mundo: menos leitura, mais alienação.

 

Vivemos um tempo de visão de mundo opaca e posicionamento crítico de bases frágeis. Quanto menos uma pessoa lê, menos tem condições de pensar por si só, de estabelecer relações entre as coisas, os fatos, os fenômenos. 

A esta altura do texto, ainda no comecinho, imagino que meu leitor esteja pensando “lá vem mais um chato falar que temos de ler aqueles livros maçantes da escola, tipo os do tal do Machado de Assis ou do Fernando Pessoa”.

 

Não, prezado leitor, não. Hoje não estou falando exatamente disso. Claro que é maravilhoso poder ler e apreciar a obra desses e tantos outros autores maravilhosos, mas hoje não é disso que estou falando exatamente. A falta de leituras (das obras, da vida, do mundo, das circunstâncias), ou a “desleitura”, como eu prefiro nomear e assim o farei neste texto, está chegando a um ponto tão nocivo que beira o patológico. Calma, eu me explico.

 

21 de maio, uma terça, meio da tarde, pouco depois das três horas, antes das quatro. Eu estava dirigindo. Entrei na rua dos Trilhos, via conhecida e movimentada dos arredores de onde moro. Três faixas. Duas abarrotadas de carros, uns quarenta veículos parados e enfileirados em cada uma. A outra faixa, a da direita, completamente vazia.

 

No alto dessa faixa mais destra, visível a um leve aclive do maxilar, uma placa: “Faixa exclusiva de ônibus das 17 às 20h”. Leio a placa, olho os cerca de oitenta carros à minha frente e acelero sem remorso. E vou passando, vou passando… A 50 quilômetros por hora: nada de ultrapassar a velocidade máxima permitida na via!

 

Olhares de reprovação. Motoristas paradões. Alguns me olhando com ar de “aonde vai esse aí com tanta pressa? Vai tomar uma multa!”. Não, gente, eu não tomei nem tomaria nenhuma multa. Eu estava circulando por uma faixa de trânsito num horário em que era permitido a um carro fazer isso. Ler uma simples placa me livrou do trânsito e dos motoristas-zumbis que estavam parados nas outras duas faixas. Zumbis que não leem.

 

Zumbis porque não leem. Estou falando disso hoje aqui, neste texto, porque essa experiência, aparentemente banal, mexeu muito com algo dentro de mim. O processo de desleitura é cada vez mais profundo, a ponto de as pessoas ficarem paradas num engarrafamento que nem seria engarrafamento se elas tivessem a percepção de ler uma simples placa de trânsito.

 

Amigos, leitura não são só as bobeiras que escrevem para nós, aquelas cheias de carinhas e figurinhas dos aplicativos ou das redes sociais. Em uma época como a nossa, em que a escrita é instrumentalizada de tantas formas, essa desleitura do mundo é algo a se pensar. E a se pensar profundamente.

 

É bem visível que vivemos em uma sociedade que não valoriza a leitura. Brasileiro é meio bobão, somos um povo tonto que valoriza as aparências, que coloca o ter e o ostentar acima de qualquer outra coisa. Ler para quê? Conhecimento e sabedoria? Bobagens! E enquanto nos preocupamos só com as aparências sem conteúdo, vamos lendo cada vez menos, vamos perdendo profundidade em todos os aspectos de nossas vidas. Vamos ficando “juntos e shallow now” – vamos ficando rasos, mas sem perder o chiste do meme engraçadinho da vez.

 

Dito de outro modo, é impressionante que, embora a tecnologia venha avançando e fazendo com que se expandam sem hesitação meios de comunicação que nos facilitam o acesso a todo tipo de conhecimento, a maioria das pessoas não sabe usufruir de nada disso para acessar informações e conhecimentos que lhe sejam úteis. 

Vivemos no Brasil uma coisa meio distópica, uma realidade que tem cara de ficção triste. Esse projeto de desleitura pelo qual o país vem passando há décadas (nem vou entrar aqui em questões políticas) chegou a um ponto em que não dá para pensar num futuro de curto prazo com pessoas mais bem preparadas subjetivamente. Sem sujeitos bem formados, a sociedade para, nada avança. Ficamos parados diante da simples placa de trânsito que nos diz que podemos seguir em frente.

Ilustração: Stop violence against women, poema visual de Franklin Valverde.