devolvam_os_oculos_do_itamar_-_franklin_valverde.jpgVocê disse que a filha do Itamar, aquele músico preto que cantava no Lira Paulistana, o pessoal que gosta de vanguarda gostava muito dele, lhe disse que a mãe dela é loira de olhos azuis, e que quando ela era pequena e pobre não percebia a diferença entre a mãe e o pai, preto. Mas uma vez, ela disse pra você, o pai dela e a mãe dela e ela desciam a ladeira da rua perto d´onde moravam distraídos e conversando no caminho de casa e um policial à paisana embicou o carro que dirigia na frente do pai dela, na frente da mãe dela, na frente dela e com arma em punho mandou Itamar, aquele músico preto que cantava na Lira Paulistana, deitar no chão. “O que tá acontecendo?”, aflita você disse que ela disse que a mãe dela perguntava ao policial.

 

“Rendi o elemento”, ele respondeu, você disse que ela, a filha do Itamar, aquele músico preto que cantava no Lira Paulistana, disse. “Está tudo bem, senhora, eu sou policial”, completou ele. Você disse, então, que ela, a filha do Itamar, aquele músico preto que cantava no Lira Paulistana, disse que gritando a mãe dela disse ao policial: “O que você tá fazendo? Ele é meu marido!”. E o policial, você disse que ela disse, ficou confuso e ele, o policial, disse: “Onde vocês moram? Você tem documentos?”. Daí você disse que ela, a filha do Itamar, aquele músico preto que cantava no Lira Paulistana, disse que escreveu, anos depois, sobre esse episódio que a marcou profundamente. Daí então que entendi o privilégio de ser branca, quando minha mãe aos berros com o guarda exigiu que ele levantasse meu pai do chão e lhe pedisse desculpas na minha frente. Você disse que ela disse que o policial estendeu a mão para o pai dela e o levantou e ela disse para você que foi quando ela viu que ele, o pai dela, estava chorando e disse para a mãe dela: “Zena, não precisa disso”. E ela, a mãe dela, ela disse pra você, retrucou: “Precisa, sim!”. E você disse que ela disse que o policial se desculpou com o pai dela, se desculpou com ela, se desculpou com alguns vizinhos que se aproximaram para ver o que estava acontecendo. A mãe dela, diante da situação, você disse que ela disse, deu um sermão no policial, pegou a mão do Itamar, aquele músico preto que cantava no Lira Paulistana, e voltaram para casa. Em casa, você disse que ela disse: “Meu pai falou sobre o perigo de minha mãe retrucar o policial, pois ele só conhece a violência”. E, anos depois, ela disse pra você que escreveu sobre a mãe dela. Ela, em seu instinto de privilégio social, o defendeu, pois não tinha repertório de perseguição policial por causa de sua cor. Ela não foi reprimida, presa ou agredida. Seu pedido foi acatado pelo policial. Você disse que ela disse que, criança, entendeu que eles não eram só uma família interracial pobre. Aos olhos do mundo éramos distintos em nossa coloração, ela, você disse que ela disse, anos depois escreveu e publicou no Facebook.

 

Ilustração: Devolvam os óculos do Itamar – Franklin Valverde