Um amigo, que voltou mais cedo para casa porque o chefe o dispensou antes da hora habitual, encontrou a mulher vendo cenas bárbaras na tevê. Era uma multidão de homens, mulheres e crianças massacrados pela força pública de algum país distante – localização geográfica dedutível pela língua incompreensível estampada nos coletes policiais.
Era uma multidão espancada, apavorada, aterrorizada e, ao mesmo tempo, vociferante. Parecia uma imitação barata de algum filme catastrófico, desses de Hollywood bem enlatados ou do cinema engajado europeu, só que mais feroz e sem nenhuma consideração artística. Meu amigo, que chora até com filme de terror tosco, recriminou a mulher e pediu a ela que parasse de ver aquele filme horroroso. Mas ela respondeu sisuda:
– Não é filme nenhum, é o noticiário! Isso aí é uma estação de trem na Hungria! São milhares de refugiados do Oriente Médio e da África querendo sair de Budapeste para tentar a vida na Europa Ocidental!
Isso aconteceu semana passada e vem acontecendo há vários meses. Para quem acredita nessas coisas de que ano bissexto traz má sorte, este ano está sendo mais bissexto que qualquer outro (mesmo tendo somente os costumeiros 365 dias), devido principalmente aos atos desumanos dos facínoras do grupo Estado Islâmico, que impõem o terror e a barbárie por onde passam.
O descalabro dessa situação de puro terror do Estado Islâmico, que o mundo ocidental, em especial a Europa, insiste em fingir que não vê, tem deslocado populações inteiras para o oeste. Sírios e afegãos têm sido os mais numerosos nesse êxodo insano e cruel.
De Damasco rumo ao norte e depois para o oeste Turquia adentro, uma sequência selaria de forma definitiva o destino de uma família: Damasco, Aleppo, Kobani, Istambul e Bodrum. Mudanças de cidades e de países que significaram para o pequeno Aylan al-Kurdi, de três anos, o início do fim.
O pequeno Aylan, seu irmãozinho mais velho Galip e sua mãe, além de outros nove tripulantes de uma precária embarcação que tentava chegar à ilha de Kos, na Grécia, morreram quando o barco virou devido às fortes ondas que o atingiram.
A imagem do menino sírio morto joga na cara de todos nós que a humanidade e a nossa ideia de civilização falharam enormemente. Sua foto correu o mundo todo, e não faltou quem questionasse se não era puro sensacionalismo a imprensa divulgar imagens tão impactantes.
Importante lembrar que imagens influenciam o curso da história. Em 1972, a foto de uma garota vietnamita nua correndo após o lançamento de bombas incendiárias nas proximidades de Trang Bàng fortaleceu o movimento antiguerra, que teve fim três anos depois.
Perguntamos, sem entender, onde estará Deus num momento desses. Os fatos, tão cruéis, fazem com que ateus reforcem, com vigor renovado, os argumentos para a sua não crença. A história vai provando, de tempos em tempos, que o filósofo inglês Thomas Hobbes já tinha razão no século XVII: “o homem é o lobo do homem”.
E o mar, curiosamente, devolveu à terra, intacto, o corpo da pobre criança que escapou das mãos do pai no momento do desespero do naufrágio, como se nos dissesse a todos: “não me envolvam nisso, essa barbárie é toda de vocês”.