Eu conversava com a Marina e não percebi quando ele entrou. Quando ouvi bom dia, me virei. A voz, barítono, com dicção pausada, me chamou a atenção. Não fiquei atenta à aula; lembro vagamente que ele falou como seria a avaliação. Ele é diferente dos outros professores. Primeira semana de aula, ele foi o último a aparecer, na última aula da sexta-feira. Alto, acho que perto de 1,90 m, chuto que tem uns quarenta anos, ou um pouco menos. Foge do estilo professor-padrão. Tem o corpo atlético. Talvez frequente academia. Veste-se de modo calculadamente desleixado e assim não tem como não ser notado. Botas pretas de cano alto, calças vermelhas chocantes e camiseta verde musgo Hering.
Cabelos cortados à máquina 3 ou 4, barba cerrada por fazer. Tem o olhar de quem esconde um segredo que nunca será decifrado; fala com entusiasmo e mexe as mãos de modo efusivo para realçar uma ideia que para ele é importante. Durante a aula, não parou um minuto para se sentar; movimentava-se com passos que pareciam encenados. A aula transcorreu em ritmo de apresentação. Eu e minha recém colega, Marina, ouvíamos quietas. O professor, em dado momento, fez referência a um livro que estava esgotado. Só podia ser encontrado, com sorte, em algum sebo virtual. “Deixa eu ver aqui”, pensei, e vasculhei no site de busca do google. Segundos depois, vi que o livro podia ser baixado em PDF. “Professor, achei o livro em PDF”. “Ah, é; que legal!”. “Eu passo o link para o senhor”. “Eu agradeço muito”. E assim eu o fiz, enviei ao professor um link do livro pelo Whatsapp, pois ele pôs na lousa o número de seu celular. O inútil de cada um de um tal Mario Peixoto. Dei uma olhada superficial no livro. Uma versão digitalizada com algumas páginas de leitura impossível. Uma digitalização feita às pressas, não imagino que proveito possa ter, como alguém vai ler uma coisa assim, mas o professor me despertou curiosidade. “Deve ser interessante conversar com esse professor”; pensei, depois da aula. Ele tem um jeito esquisito. Será que ele daria trela pra uma adolescente? Rsrsrs. Tenho dezoito anos incompletos. O professor sabe bem o que isso significa, o quanto isso pode complicar a vida dele. “Ele deve ser muito ocupado; nem me percebeu na sala”; assim achei e fui pra casa maquinando como chamar a atenção dele. Pra ela, um flerte era pura vaidade. Não o conheço; eu o vi pouco mais de uma hora; e se o jeito dele falar me deixa curiosa é porque quero saber como ele vai se comportar na minha presença. É só isso que penso. É só isso que ela pensava, desestabilizar um professor que parecia tão seguro de si kkkk. Ele pra mim não é bonito. Embora acho que ele ache que é, que impressiona as meninas na sala de aula. As roupas que veste e seu jeito é de quem é vaidoso e se acha a última bolachinha do pacote. Deixa a impressão de nunca dar certeza de que o que fala é para ser levado a sério ou se se aproveita da posição de professor para zombar com adolescentes deslumbradas. Se ele não zomba, não tenho certeza; mas acho que quem brinca com fogo merece se queimar.
Na aula da semana seguinte, eu quis arrumar um pretexto pra jogar conversa fora com ele. A aula havia terminado e eu enrolando com a Marina e outras duas colegas para sair da sala. Ele, enquanto isso, acertava o diário de classe; até que o João, um sem noção, se aproximou dele e começou uma conversa sem fim. Aquela coisa de quem quer se aparecer para o professor e exibir que é muito sabido. Coisa de besta. Ele queria ir embora, dava pra notar, e o João não parava de falar. E eu enrolava o pessoal do meu lado, pois queria depois que o João desgrudasse jogar meu charme. Ele, que estava sentado, levantou-se, arrumou os livros e disse que a conversa estava boa e que podia ser seguida no Buim. “Sim, vamos todos pro Buim”, eu falei. E o João não parava de falar. No caminho, o João continuou alugando o professor com papo furado. Adiantamos os passos, eu e a Marina fomos na frente; as outras duas que estavam conosco não toparam ir pro Buim. Chegamos e fiquei esperando o professor chegar. Ele não demorou. Mas, ao lado dele, o João. Eu não escondi o desapontamento. “Cacete! Que mala!”. O professor também estava incomodado, percebi. Deixou o João falando sozinho e um tanto sem cerimônia se despediu. Deu um tchau como se quisesse se ver livre da situação. O professor realmente não se deu conta das minhas intenções. Eu não consegui fazer com que ele me visse com o João se mostrando. “Esse cara, o João, é muito sacana. Aluga o professor. Ficar com esse cara aqui agora é o fim da picada. Não tava no script essa…”. O desapontamento que tive foi enorme. Não contava ter um colega tão pegajoso. Fiquei, de qualquer forma, com a sensação de que pudesse estar dando bandeira, que o João havia percebido… como também, se sentido desejada, cogitou mesmo que o João pudesse estar querendo alguma coisa com ela. “Perturbar o professor pode ter sido pretexto pra ficar comigo no Buim”, pensei. Tinha de fato ela o sentimento de que era o centro das atenções. Cabelo castanho arruivado nos ombros, quase 1,70 m, magra, olhos verdes que ao sol tinham a coloração mais percebida, traços do rosto delicados que para um voyeur atento guardava semelhança com a Vênus de Boticelli; suas passadas eram discretas, mas sua movimentação não passava despercebida; tinha a voz soprano típica de adolescente que não queria ser destacada pelo que falava, mas somente pela presença física; eram contidos os ademanes característicos, assim como suficientemente notados por quem estava próximo. Mantinha o olhar para baixo, como se por uma razão secreta quisesse se esconder. João podia não ter percebida nada. Era um nerd. Autocentrado, via o professor como meio para confirmação de que era sabichão. “Acho que esse professor não entendeu minha pergunta…”, conjecturou o João. Mal notou, de fato, o João, a presença dela e da Marina. Não dirigiu palavra alguma para elas e mal notou que estavam na entrada do Buim, ou mesmo o que significava Buim. Já a Marina ficou desconfiada de que havia alguma coisa estranha naquela situação. Na verdade, Marina estava de início animada com a ida ao Buim, mas acabou decepcionada, pois com a saída repentina do professor o João também tomou seu rumo e mal deu tchau para elas. Sozinhas, e um tanto sem graça uma com a outra, não chegaram a entrar no Buim. “As meninas não quiseram vir…”, disse Marina. Ao que eu retornei: “Eu achei que o pessoal queria vir…”.
Apesar da frustração, eu não desisti. “Marina, amanhã vou pra casa de meus pais, em Curitiba; vou pegar a aula do professor… hoje; aí não fico com falta…”, falei ao encontrar a Marina na semana seguinte ao episódio no Buim. Marina, já desconfiada, pensou: “Essa menina tá com coisa; que diferença faz ela ficar com falta amanhã? Ela tá dando em cima do professor…”. Entrou discretamente na sala e o professor notou. “Hoje não é aula dela…”, pensou ele. Sentei-me então ao fundo e assisti à aula. A minha presença, de qualquer forma, gerou olhares dos colegas que não sabiam se eu era aluna nova; os que tinham na memória a minha movimentação nos corredores da faculdade, por outro lado, provavelmente ficaram com uma interrogação. “Terminando a aula vou conversar com ele; dizer que amanhã vou viajar, por isso…”. “Você sabe que não sou dessa turma, né?”. “Sim, claro”. “Amanhã vou viajar e então resolvi assistir aula hoje; você não põe falta pra mim amanhã, tá?”. “Você vai pra onde?”. “Pra casa de meus pais; sou de Curitiba”. “Não, não vou colocar falta, mas sua amiga, a Marina, ela virá na aula, certo? Então fala pra ela me lembrar; pra eu não esquecer”. O professor achou inusitado o pedido, mas não fez nenhuma objeção. Enquanto a sala esvaziava, ela permanecia em prosa com o professor. Um tanto incomodado e pressentindo a inconveniência da situação, o professor lhe respondia por monossílabos. “Faz muito tempo que você é professor?”. “Antes de você nascer”. Depois de alguns minutos, ambos saímos da sala. Ela demonstrava satisfação. A sensação de que definitivamente o professor se rendera a seus encantos. Estrategicamente, ela esperava que depois do flerte partisse dele o galanteio. Ele vai me procurar e aí eu não dou trela. Teria, com isso, a confirmação de que havia dobrado o professor, que ele estaria preso a ela. E com isso podia o esnobar. Se ele for muito abusado eu falo pro coordenador que tô sofrendo assédio. O que não é mentira. A situação que havia sido criada por ela só podia deixar para ele a impressão de que ela estava com segundas intenções. Por isso, como personagem na mitologia grega, Circe, a feiticeira cujos encantos transformam homens em feras, ela tinha firme que o professor havia caído em seu jogo de sedução. O professor, entrementes, ficou envaidecido. Ele que de fato era bastante vaidoso ficou tentado a dar asas à sua imaginação. Na sua idade, ser gracejado por ela o deixou aturdido. Ao se despedirem, beijou-lhe o rosto na face direita e apertou seu corpo contra o dela, como a sinalizar que havia entendido perfeitamente o que havia de subliminar naquela situação.
Só, com seus pensamentos, refletiu: “Tem alguma coisa que não bate nessa história. Ela deve ter faltado a alguma aula hoje pra dizer que vai faltar amanhã e me pedir para não por falta par ela? Não faz sentido. Ela não tem aula nesse horário? Mas há uma situação especial para ir pra Curitiba amanhã? Sendo de lá, ela deve ir pra Curitiba sempre depois da aula que darei amanhã? Ela tem ou não tem aula hoje com outro professor no mesmo horário que a minha? Não sei. Mas tenho como saber. Vendo o horário da sala dela. Se se confirmar que ela teve outra aula, faltou nessa aula, e veio assistir à minha, preciso ficar esperto. Ela tá jogando charme. É tentador. Ela é encantadora. Se eu cair nessa tô fodido. Ela, tenho quase certeza, não tem dezoito anos. Acho que já fiz besteira quando apertei o corpo dela na despedida. Isso. Só isso. Pode dar muita confusão. Bosta!”. Perturbado, o professor logo procurou se certificar do horário dela. E, para sua surpresa, a professora que daria aula no horário em que ela havia assistido a aula dele havia faltado. Ele não conteve a frustração. Para ele, a presença dela na aula se justificava. Só sua imensa vaidade, e senso desmedido de virilidade, o havia feito supor que fora alvo de uma cantada. Acho que a Marina ficou desconfiada. Ela sabe que inventei essa história de ir pra Curitiba, pois lembro que falei pra ela que meus pais preferem me visitar, pois eles acham que controlam minha vida aqui em São Paulo. Pois é, não vou pra Curitiba. Mas na semana que vem, quando eu vir novamente o professor, vou inventar uma história qualquer de Curitiba só pra puxar conversa.
Ilustração: Circe – Franklin Valverde