O monoteísmo, cristalizado na crença em um só deus, aportou na civilização ocidental, e também no mundo em geral, trazido pelas chamadas religiões abrahâmicas, isto é, as religiões que têm como patriarca-mor Abrahão: o judaísmo, o islamismo e o cristianismo, este último considerado, de certa forma, uma dissidência do judaísmo.

Sabe-se que os povos primitivos cultuavam sem exceção o politeísmo, ou seja, a crença em diversos deuses. Dentro de todo o espectro das religiões monoteístas de hoje, entretanto, há uma que conserva resquícios do antigo politeísmo. Refiro-me à religião católica, tanto a romana quanto a cultuada especialmente nalgumas regiões do Oriente Médio e na parte oriental da Europa.

O catolicismo romano se atribui o apanágio – e com fundamentação histórica, diga-se – de ser o primitivo e genuíno cristianismo, que ao longo dos tempos se fragmentou nas diversas facções hoje conhecidas, incluindo o catolicismo oriental, apesar de este se auto-denominar ortodoxo.

Lembro-me ainda da primeira visita do papa João Paulo II ao Brasil, se não me engano nos idos de 1980. Nessa ocasião, em fala oficial proferida, ele profligou a promiscuidade do catolicismo brasileiro, de algumas regiões, com as religiões politeístas de origem africana, catolicismo esse que ele considerava espúrio. Tratava-se de uma clara referência ao chamado sincretismo religioso vigente principalmente na Bahia, onde a Virgem Maria e os santos do catolicismo são associados a primitivas divindades pagãs da África.

Com todo o respeito que devo ao Sumo Pontífice daquela época, e também ao atual, que com certeza tem a mesma convicção de seu antecessor, entendo que João Paulo II não tinha razão em sua censura. E não tinha razão por um motivo muito simples: o sincretismo praticado em parte de nosso catolicismo decorreu dos próprios vestígios de politeísmo já vigentes na religião católica, ao menos de forma latente e sub-liminar.

Se não, vejamos:

Para começar, a própria concepção da denominada Santíssima Trindade já deixa margem a dúvidas, ao estabelecer que há um só Deus em três pessoas distintas. Confesso que até hoje não entendi a explicação para esse conceito, apesar da boa vontade com que mo transmitiram nas lições de catecismo. Também não poderia ser para menos, porque a própria dogmática da Igreja Católica ensina que se trata de um Mistério!

 

Em segundo lugar, há no catolicismo, tanto o de Roma quanto o oriental, um grande apego ao culto à Virgem Maria, praticamente tida como uma divindade à parte. E, não bastando só uma para atender à sede de fé dos fiéis, foram entronizadas na devoção dezenas de Nossas Senhoras espalhadas por todo o mundo: Nossa Senhora de Lourdes, Nossa Senhora de Fátima, Nossa Senhora Aparecida, Nossa Senhora de Guadalupe, etc., etc. E o campo continua aberto para o surgimento de novas Nossas Senhoras…

 

Por fim, há os santos, aos quais os crentes dedicam com esmero as suas preces e as suas expectativas: Santo Antônio, São José, São Cirilo, São Bento, etc., etc. (o da moda atualmente é Santo Expedito). Aqui já se pode falar em centenas, porque para cada dia do ano há um… E tem mais: os santos têm até mesmo o direito à canonização, que segue um ritual e um procedimento detalhadamente previsto no Código Canônico.

 

Assim, nada mais natural que os católicos brasileiros, nomeadamente os da Bahia, fizessem a associação entre a Virgem Maria e os santos frente às divindades do ancestral politeísmo que seus antepassados cultivavam na África: desta forma, a Virgem Maria é Iemanjá; São Jorge é Ogum; Santa Bárbara é Iansã. E assim por diante, configurando-se uma co-relação simetricamente completa…

Vê-se, por tudo isso, que Sua Santidade o papa João Paulo II, quando esteve no Brasil há mais de trinta anos, ao fazer aquela admoestação aos brasileiros agiu mais impulsionado pelo zelo da fé do que pela Razão. Isto obviamente é dito sem desmerecer a reverência que lhe devem os católicos patrícios…

 

J. Dantas de Oliveira é advogado em São Carlos.