tempo_-_franklin_valverde.jpgE o tempo? Que dia é hoje? E o espaço que nos limita? Tempo, tempo, tempo, tempo, diz o Caetano. O tempo largo de Espanha, Portugal e Itália, o nosso tempo latino-americano, de um passado que não tinha lugar (espaço) para acontecer, não importava o tamanho, pois as conversas eram longas, sobre a vida, a política, um livro, a arte, a cultura, o próprio tempo. Para esse tempo largo tínhamos também um espaço imenso. Parece, dizem, que Einstein acabou apresentando o tempo e o espaço como velhos conhecidos, cúmplices, sem dúvida nenhuma “sujeitos” da mesma laia…

 

O tempo da política, medido em mandatos, acordos, tempos longos da negociação, tempos curtos da escolha, do apertar um botão na urna eletrônica, momentos que decidem vidas, destinos, trajetórias. O tempo da paciência, do possível, da luta, da revolução. O tempo que se concretiza no espaço público, na ação, na ágora, no agora da decisão.

 

Tempos de abril… No Brasil, num 1º de abril vergonhoso e mentiroso (como todos são…), militares, civis, “instituições” políticas jurídicas, meios de comunicação, todos covardes, derrubaram um governo legítimo que criava espaços e tempos novos, instauraram uma ditadura, um tempo-espaço opressor de 21 anos que perseguiu, prendeu, torturou, matou e desapareceu com tantos tempos livres e criativos espaços, jovens talentos imprescindíveis, forças vivas do país, esperanças e alegrias de todos nós. Mas saímos daquele sufoco… E num 25 de abril, em plena primavera portuguesa, soldados saíram às ruas com cravos vermelhos em suas armas, tanques, fardas, para derrubar outra ditadura e liberar o espaço político, instaurando o tempo para recriar, criar, alimentar a democracia, reino da desordem política criativa que pede paciência, acima de tudo, e liberdade, que não se dá, se conquista com muita luta, sim. Tempos livres de geringonças políticas.

 

Nestes novos (?) tempos temos o tempo curto da pressa que está (ou estava) por toda parte, condensado numa tela de celular. Pouco espaço para tanto tempo. Nas Cosmicômicas, Ítalo Calvino apresentou os instantes angustiantes que precederam o Big Bang de maneira claustrofóbica, o tempo e o espaço, as coisas e tudo que viria a existir, inclusive eu e você. No teatro, Aristóteles diz em sua Poética, a ação deve compreender o que acontecesse entre o amanhecer e o por do sol. Shakespeare condensa batalhas, traições, crueldades, sonhos e o amor no palco elizabetano usando a nossa imaginação para compor tempo, espaço e ação, na tragédia, no drama, na comédia e na poesia. Brecht instaura o tempo no espaço da ação política. Ionesco e Beckett tornam absurda essa ilusão (o tempo) num lugar (espaço) indefinido. O tempo do teatro, como na política, se realiza na ação, criando espaço sem limites na imaginação.

 

Mas temos, ou tínhamos, o tempo do café escoando pelo filtro, caindo quentinho na caneca. O tempo da tapioca (2 minutos?) estalando na tapioqueira de ferro. O tempo do ovo (3 minutos mais uma caneca com gelo) escaldando na água fervente. O tempo sem finalidade, o espaço infinito, a imensidão do vazio acima de nós. Vazio cheio de tempo, tempo preenchido de vácuo, de vazio, de nada. Não são a mesma coisa, dizem os físicos. Não deixa de ser uma ironia, já que todos se perguntam e nos perguntam, o que fazemos com o nosso tempo? Muitos não podem se dar ao luxo de fazer essa pergunta, uma vez que o tempo é dinheiro, ou mercadoria, tempo de nossas vidas que vendemos, meio de troca, força de trabalho de que se apropriam os que a transformam em mercadorias, serviços, conhecimento aplicado, técnicas e tecnologias, nos devolvendo quase nada por tanto espaço criado com nosso precioso tempo. Ainda criaremos um tempo sem dinheiros, escambos, tempo por tempo.

 

O tempo escorrendo no relógio de Dali. Tempo líquido de Bauman, incertezas, utopias, distopias, tudo sempre envolvendo o (tempo) inesperado, o incerto, o lugar nenhum ou nenhum lugar. A assustadora falta de esperança. Ou seria de espera? Por que Godot não chega e essa árvore à beira da estrada não dá frutos? O maldito tempo condensado num espaço que nos limita. Limita? Vamos ali tomar um café com Rovelli ou Einstein e voltamos vendo curvas de espaço e tempo, o mar se curvando, o céu desabando sobre nós, um monte de matéria escura à volta disso que chamamos de mundo, coisas que parecem não existir, ilusões, uma confusão dos diabos entre tempo, espaço, luz, ausência de luz, matéria, coisas e mundos que estão dentro das coisas que não existem, apenas estão por aí. Universos, multiversos, tempo e ação simultâneos, aquilo que é, foi, será está por aí e uma hora (tempo) nos demos conta e forma (espaço). Aí o café já esfriou…

 

O tempo da pandemia. Quarentenas de 120, 180, 365, 1.000 dias. Uma coisa que não é viva, uma partícula maldita chamada vírus, que parasita nossas células. Nos toma espaço e tempo, se reproduzindo em luta dentro de nós, reduzindo tudo que vivemos, sentimos, passamos a uma cama sem tempo. 2, 14, 30, 110 dias, contaminados, infectados, transmitindo, recebendo ou resistindo a sintomas (assintomáticos ou não), reações, internações, nosso tempo virando ar, máquinas nos ajudando a respirar, a vitória ou a derrota, a vida ou a morte. O tempo do isolamento sendo combatido pelos que só veem dinheiro no tempo, produção e mercado no espaço: dane-se a vida, o que importa é a grana. O tempo do espaço de isolamento como ato de resistência à estupidez, incompreensão e violência. Não são limites (o tempo e o espaço confinados), mas energias condensadas, inteligência sanitária, tempo de espera, tempo de ciência em busca da cura ou do conhecimento, vacina, remédio, medicinas.

 

Ontem um amigo dizia que todo dia pode ser domingo, mas pensei que isso depende da situação em que a pessoa está envolvida, no tempo e no espaço. Com o teletrabalho, todo dia pode ser segunda-feira e todo espaço escritório, fábrica, baia, sala de aula, laboratório, palco, circo, arena. Outro dia, outro amigo encontrado (por acaso, rapidamente, ambos com máscaras) na rua dizia que não aguentava mais a quarentena por conta da desordem que a nova ordem, o “novo normal” impôs. Resistência ou reação? Pois se todo dia você só “pensa em poder parar”, quando para (por querer ou não, como agora…) pensa “na vida pra levar” e acaba se calando “com a boca de feijão”. Hoje (quando?), minha mulher me perguntou se era sábado, mas era (é?) sexta-feira, um dia muito esperado em outros tempos: dia em que o espaço importa(va?) mais, em que o tempo “rola”: “sextou!”. Não importa, digo pra ela, o bom é que “todo dia, todo dia, todo dia, todo dia eu quero que você venha comigo”.

 

Eduardo Viveiros de Freitas, num espaço de tempo, em tempos de pandemia. Julho/2020

 

Ilustração: Tempo – Franklin Valverde