Olho o espelho; estou só, de cuecas. Aproximo-me dele um pouco; a uma distância de não mais que 20 cm. No quarto onde estou, a luz é tênue: vem de um abajur à minha direita. O espelho resulta da porta do guarda-roupa, que faz fronteira com a parede lateral, à esquerda da porta de entrada, que está trancada. Quase à meia luz, vejo meu rosto, num ângulo próximo a 60º da perpendicular de meu corpo. No ângulo em que me encontro, meu olhar é de soslaio; de esguelha, como queiram. Levanto o sobrolho; meu olhar se atém à saliência esquerda de meu rosto. Meus olhos me veem. Além da saliência da face, vejo suaves sulcos que se originam da extremidade esquerda de meus olhos. São sulcos discretos; apenas realçados quando rio com efusão. O que não ocorre agora. Noto, igualmente, ao levantar o sobrolho, uma expressão de falso desdém. Um ademane um tanto patético. Experimento mais um, ao franzir os vincos da testa. A imagem do espelho exibe um pouco de meu rosto – da mutação dele – no 603 do Hotel Roma, cá em Lisboa Revisited de Pessoa.
Retenho-me por um tempo diante do espelho. Insisti no olhar, resisti, como último samurai na época do Shogunato, mas tempus fugit. Estabeleci regras rígidas, disciplina sólida. Fui vencido por forças poderosas. Agora, sou, definitivamente, dois; ou diria, de modo melhor, somos?. O do quadro no espelho e o que está fora do quadro. São dois, tão idênticos quanto diferentes. Como no romance de Robert Louis Stevenson, que, claro, nada diz sobre mim, sobre meu rosto, seus ademanes, nem poderia. Um recôndito, enigmático na justa medida, que lê tarô e gosta de apreciar coincidências e ocorrências súbitas. Outro em constante contato com o mundo. Os dois convivem sem grilo, sem qualquer grilo, sem falsidade. Embora, o outro não saiba que o eu, que não sei se imagem sou ou realidade. Como quando acordo e percebo que o sonho sou eu na realidade sonhada, mas esses dois lados, o mesmo, pois sou eu em sonho, na realidade, na imagem do espelho, e não sou eu – recuo um pouco; não me dei conta senão alguns segundos depois; meu rosto é parte do que vejo: meu dorso, minha barriga levemente saliente, as cuecas pretas que visto; olho fixamente numa posição praticamente perpendicular ao espelho; além do rosto, antes devidamente enquadrado, no quadro agora o resto do corpo, e assim me multiplico: meu dorso é ele, não eu, nem a imagem, como meu dorso e minhas pernas, meus braços, que também vejo, não são eu, nem outro; pois, sem rosto, dorso, pernas, braços, não seria eu. O primeiro, o do espelho – ou fora do espelho, quem sabe –, Mr. Hyde, ataca à noite, nas sombras; escreve e faz coisas que ninguém sabe que faz. Algo assim: na escuridão das trevas, Blavatsky e a doutrina secreta. Hermes Trismegisto Corpus Hermeticum. De dia, o do espelho – ou fora dele… –. Dr. Jekyll, escreve e faz coisas para o mundo. Circula correta e ajustadamente conforme as quatro regras do método cartesiano. Tem sempre presente as implicações dos modus tollens e ponens. Eu, ou o outro, narcisista, escrevo como bem sabe minha alma: a verdadeira, não a imagem – a da imagem; pura ilusão. Há algo de insano, profundamente insano no que se passa. Equacionar meu estado d´alma é como vasculhar indefinidamente um quebra-cabeças e não encontrar resposta. Súbito, como se sofresse transtorno bipolar, algo sem quase importância altera completamente meu estado de humor. Meu? De quem? Eu no espelho? Fora dele? Tento, de todas as formas, o equilíbrio mental. Mas pequenas coisas, afetos, ou um sentimento utópico me faz crer que devo me guiar pelo que restou na caixa de pandora. Pois, misteriosos, tão misteriosos são os desígnios dos deuses. Tempus volant sed rosa pulcra est; homo sum nihil humanum… Às vezes, mais do que na maioria das vezes – no espelho e fora dele – não sei onde, sinto-me envolvido por um pesado ar de estranheza. Como se, bruscamente, meu espírito fosse assaltado pela sensação de que não sou eu mesmo. É algo similar a um estado de transe hipnótico. Um transe que se prolonga, no qual, malgrado, tenho a consciência – imagino ter… – de que os dois lados são absolutamente nítidos: eu e o outro no mesmo – Mr. Hyde e o Dr. Jekyll. Digo: estou em transe e sei perfeitamente que estou em transe. No transe tento, letargicamente, um movimento rumo à normalidade e ausência de estranheza. Mas, qualquer movimento que faça me faz recordar sonhos de infância. Quando criança, sonhava que tinha que fazer alguma coisa importante e que tinha de superar inúmeros obstáculos para fazê-la. Obstáculos facilmente transponíveis; entrementes, toda vez que tentava, novos obstáculos, inesperados e imprevisíveis, surgiam, numa cadeia que se avolumava terrivelmente aos meus olhos. Isso me ia angustiando, me ia levando a um estado de desespero sem fim, pois por mais que tentasse não conseguia me mover para realizar o movimento mais elementar. Sabia bem o que tinha de fazer; sabia que era importante fazê-lo; sabia que estava ao meu alcance realizar o que me cabia; no entanto, não conseguia me mover até que, depois de tanto tentar, e não conseguir, via o objeto caprichosamente se afastar do lugar para onde tentava alcançá-lo. A angustia aumentava em escala exponencial. E, ainda sem saber se havia sonhado ou estava desperto, acordava. Ao me perceber acordado, um inelutável mal-estar. O sonho, o desespero no qual me encontrava, havia sido rompido pelo despertar. Tudo não havia sido senão um mal sonho. Mas, acordado, apenas era uma outra situação que não diferia da do sonho. Como se houvesse continuidade entre sonho e vigília. Como se jamais saísse do sonho. Como se a vigília fosse, como sonho, ilusão. O enigmático sentimento de não fazer o que deveria ter feito. Acordado, por absurdo, o incômodo pelo irrealizável: aquilo que em sonho não fiz, também em vigília não fizera. Alguns minutos na cama…; não! Na frente do espelho, fora do espelho…; bem, acontece que, acordado, como agora, algo estranho, que não se realizou. Ocorre que de mim, dos dois, muito esperava e, na solidão dos devaneios, os signos que me surgem são indecifráveis. Não sei quem escreve. Eu ou o outro? Mas o outro sou eu, no espelho, que me fixa. Eu, no espelho, digo: sentido estranho do ocultismo, páginas de Madame Helena Blavatsky. Oculta, a clepsidra espreita-nos; mais um outro, como meu dorso, meus braços, meu rosto, que me apavora. Fecho a porta do guarda-roupa. Com esse movimento simples, que mal percebi quando fi-lo – e sequer pensei o poderia fazer –, deixo de existir. Mr. Hyde e Dr. Jekyll estão mortos. O que aqui se escreve, quem fê-lo, não é, nem poderia ser, um ou outro.
Ilustração: Monólogo – Franklin Valverde