nota_10_-_franklin_valverde.jpgArredio, tanto quanto possível, esquiva-se, ele, de conversas com os colegas na Faculdade. Não que os ignorasse, mas com senso de proteção, e humor carregado por indisfarçável aura de misantropia, não se sentia bem acomodado para participar das conversas frívolas, triviais, frequentemente travadas entre os professores (tinha especial contrariedade quando ouvia conversas sobre frequentação de restaurantes em cidades turísticas do circuito internacional: Paris, Reykjavík, Bariloche, Barcelona…; parecia-lhe uma forma de esnobismo filisteu exibir degustações como crianças deslumbradas que se exibem no TikTok).

Exalava sempre para ele, na atmosfera de trabalho, inevitável ar postiço de conveniência social, de sorrisos protocolares, de falsidade que, todavia, convém como pressuposto inquestionável num pomposo ambiente de, digamos, classe média alta paulistana. No trânsito entre aulas, cruzou um professor do curso de Arquitetura com o qual tinha intimidade de aceno com o chapéu – nisso, a lembrança das primeiras páginas de Dom Casmurro… Disse-lhe, então, o referido professor, numa conversa fortuita de corredor, que entregara as atividades do semestre feitas por uma turma como invariavelmente fazia: maquinal e cerimoniosamente (o vocabulário é dele; o professor com o qual cruzara acidentalmente era mais coloquial na forma de se expressar). Reconhecia, o professor, alguns alunos, não todos, pois, pelo nome; e tinha o hábito de decorar sobrenomes para o caso de se deparar com Gabrielas e Gabrieis…; as fisionomias dificilmente lhe escapavam, mesmo após um bom tempo sem ver os alunos de um semestre letivo, assim lhe assegurou o professor, na fugaz conversa inadvertida. Giovana era uma aluna, para o professor, comum, sem qualquer destaque notável (com atenção ao relato, lembrou ele uma ocasião, numa Semana de Artes, ter visto alunas de Arquitetura; e o marcou significativamente um padrão de beleza tão reconhecível que quase, entre elas, elas não se indiscerniam). Como outras, não se destacava nas aulas; não tinha uma atenção dele, do professor, que o levasse a percebê-la além do lugar em que se acomodava na sala de aula. Entregou-lhe a atividade para confecção da nota bimestral como fizera com todos: maquinal e cerimoniosamente. Notou, entretanto, o professor, assim lhe asseverou, que Giovana, ao recebê-la, demonstrou alguma contrariedade: franziu a testa e fez um leve movimento jogando o pescoço para trás; olhou fixamente para a atividade corrigida por uma fração de segundo, ao contrário dos outros, que maquinal e cerimoniosamente esticavam o braço e recolhiam a devolutiva do que ele, o professor, lhes entregava. Enquanto aguardava o aluno, ou aluna, seguinte, num rápido reflexo lançou o olhar para o registro de notas e viu que Giovana havia tido 9,5. Notas entregues e com o término da aula foi surpreendido pela presença de Giovana, protestando por não ter obtido 10,0. Pedia Giovana explicação por não ter ficado com 10,0. A reivindicação lhe causou embaraço. Havia se dado conta, no momento em que a tinha à sua frente, que Giovana fazia parte de um grupo de alunas que se sentavam nas últimas carteiras nas duas fileiras próximas à parede, à esquerda de onde as podia avistar durante a aula. Era um grupo pouco participativo, com, supunha o professor, cumplicidades entre elas. Entravam nas aulas conversando e, enquanto estas transcorriam, mantinham-se atentas.

– Vou rever, claro – Incisivo, garantiu-lha. – Na próxima aula eu te dou retorno. – Completou, enfático, mas igualmente aturdido com tão inesperada reivindicação de alteração de nota. 

– Eu me empenhei tanto e mereço 10,0; não dá pra dizer agora o que faltou? Eu fiz tudo que você pediu… – Reagiu, Giovana, contrariada. Ao embaraço com a presença da Giovana, seguiu-se a sensação de desconforto com a maneira imperativa com que praticamente não exigia outra nota senão 10,0. 

– Sim, claro, disse que vou ver; preciso rever com cuidado pra, se for o caso, fazer a alteração; e eu tenho mais uma aula hoje… 

– Então vou ficar uma semana sem saber minha nota? 

– Não posso mudar sua nota assim sem ver ao certo…; escrevi que sua redação tá confusa…; posso ter feito uma leitura muito rápida…; isso pode acontecer; mas, sim, sim, não se preocupe…; você foi bem, muito bem…; às vezes há detalhes nos critérios de avaliação… – Dessa forma, lhe descreveu o professor, sucedeu-se a incomum conversa com Giovana. Todo professor, de algum modo, e isso acontecia com ele, se prepara para contestação de aluno na iminência de reprovação. Esta, sim, uma situação comum e seus inevitáveis embates que opõem afirmações de poder tanto quanto, onde trabalhava, veladas ameaças vindas de alunos que teriam de explicar em casa a razão de uma DP. Lidar com isso é parte do jogo. Escapa ao jogo a situação que lhe relatou o professor. 

– Mas eu não concordo com a nota…; depois a gente conversa… 

– Tudo bem; até lá você aguarda, ok?

Giovana deu meia volta e se retirou da sala. Ele, o professor, reteve-se alguns segundos para conferir os registros das notas da turma. Foi aí que notou, assim lho disse, no grupo da Giovana suas colegas haviam ficado com 10,0. Ele ouviu o relato sem fazer nenhuma interrupção, pois o professor falava como se não houvesse interlocutor. Percebendo isso, à fala do professor, ele o acompanhava com discretos meneios da cabeça e quase inaudíveis sons guturais denotando sua presença. Da prosa casual para um caso do qual ele não tinha experiência, cada qual tomou um rumo nos corredores da Faculdade. 

– É, é complicado; esses alunos…; você precisa ver a melhor saída nessa situação; boa sorte e até; boa aula; eu sigo por aqui… –  Disse ele, evasivo, que, contudo, teve do professor apenas o aceno com o polegar direito para cima…

Ao sair da sala, ruminou ele, ruminaria, o professor: “De fato, trata-se de uma aluna acima da média? Sinceramente, a presença dela nas aulas até agora não deixou nenhum sinal nesse sentido. Teria eu feito uma avaliação mais positiva do que, de fato, caberia? Teria ela me procurado para exigir a nota máxima se tivesse recebido nota mais baixa, mas, mesmo assim, mais alta do que as das amigas? Nas próximas aulas terei a resposta. Pelo menos para saber se ela é mais que o normal. Sim, isso é muito fácil saber…”. 

O caso Giovana deixou o professor perturbado, conjecturou ele, enquanto caminhava. A conversa fugaz com ele, um tanto inesperada com alguém que praticamente não conhecia, fê-lo continuar ruminado após cada qual seguir seu rumo nos corredores labirínticos da Faculdade: “Relerá ele, caso o faça efetivamente, a atividade da Giovana com uma régua bem alta e um dilema lhe surgirá. Parece que se ele não tem consciência, intui de algum modo o dilema. Justificar para Giovana que, sim, podia ele ter feito uma leitura mais favorável das respostas que ela deu à atividade que corrigira. Admitiria uma falha de leitura, uma desatenção, sim. Uma desatenção diante de tantos trabalhos, sim, ele havia se enganado, pois a nota 9,5 não correspondia ao que Giovana havia feito. Ocorre que, ele ponderaria, isso só seria feito pelo confronto com as atividades feitas pelas colegas da Giovana. E, inevitável, teria ele de igualmente confrontar o trabalho da Giovana e os que receberam 9,0, 8,5, 8,0, 7,5…, numa turma com 50 alunos… (Esse, imagino, o tamanho das turmas de Arquitetura). Sua perturbação aumentaria. Como recolher todas a atividades que já havia entregue e deixar claro para Giovana que não teria como alterar sua nota e, eventualmente, não alterar outras. Quer dizer: ou admitiria imediatamente o erro na avaliação ou teria de rever, e eventualmente alterar, quase inevitavelmente, outras notas e com isso, frente a possibilidades excludentes, admitir sua inépcia. Sim, sim, poderia ele especular: esse meio ponto para essa aluna é tão só um capricho; ela deve se achar diante das colegas e agora me pressiona por uma questão de afirmação, não admitir que é menos que as colegas; birra, portanto, e eu sou idiota se ficar aqui fazendo tempestade por meio ponto…”. Sim, sim, ele continuou especulando, o professor refletiria: “Giovana, vaidosa, não está preocupada com a nota, ou de modo mais nobre, com o retorno dado por mim, e sim, eis talvez a dimensão mais abscondida da inveja, com o constrangimento por ser em seu grupo a única a não ter 10,0”. Sim, sim, especulou ele, ainda, o professor refletiria: “Certo, será que de fato eu errei na avaliação da Giovana? E se sim, nos pequenos joguinhos de poder que envolvem vaidades, disputas de egos entre colegas na sala de aula, que vantagem eu levo admitindo minha inapetência? Mais grave ainda, inapetente, e só teria errado na avaliação da Giovana?”  Eis então, resmunga ele, o desconforto do professor ao atalhá-lo no corredor da Faculdade. Poderia, claro, num gesto burocrático e tão só mecânico, como o da entrega das atividades para a classe, alterar para 10,0 a nota da Giovana. Sabia ele que esse gesto de aparência tão maquinal, para o professor, era a admissão de sua fragilidade nos pequenos jogos de poder diante de 50 alunos. 

A situação para o professor era desconfortante porque Giovana o havia abordado com um tom de reivindicação de quem precisa de meio ponto para ser aprovada. Sob tensão assim, o professor sabia precisar reunir argumentos, provas e toda sorte de senões e que tudo que falasse e provasse jamais convenceria o aluno a ser reprovado. Para não se expor a arengas em torno de meio ponto, criava artifícios para se livrar de choradeiras: jamais fechar uma nota com um aluno reprovado por meio ponto. Fugia de ter aluno como desafeto como o diabo da cruz: angariar a fama de professor com má-fama não era um cenário que desejava. O caso Giovana, no entanto, tinha algo de sibilino para o professor, algo que, depois da atropelada conversa de corredor com ele, o fez rememorar. “Havia já notado, no dia da atividade, que ela ficou além do tempo. Um cuidado exagerado para completar alguma coisa que não havia conseguido escrever no tempo da prova. Sim, lembro do olhar dela, da presença, da agitação, que ela chegou à sala antes de todos, antes de mim…; certo, certo. Posso juntar as pontas que lingam o dia da prova e o que aconteceu hoje. Assim, antes de criar fantasia, imaginar conspirações, juntar as pontas. Mas, independentemente de bobeiras, imaginação, o que aconteceu hoje? Que sentido tem o que acorreu? Qual o sentido de dizer, depois a gente conversa?”. Havia, na sentença reticente da Giovana, suspeitava o professor, uma intimidação tácita. De algum modo, o professor supunha, Giovana lhe criaria confusão se no intervalo de uma semana não visse sua nota alterada para 10,0.  

Giovana, isso ele não sabia, pois não era professor dela, e nem ficou sabendo, era filha do professor Righini, irmão da psicanalista Maria Domitila, que ele lia com afinco da época da Coleção Primeiros Passos, da Brasiliense. Também o professor não sabia que Giovana era filha de seu chefe…, um arquiteto que entre as idiossincrasias gostava de polemizar sobre exageros pseudocientíficos a respeito do aquecimento global. O professor, de fato, desligado, não era dotado do senso de proteção dele; assim, decorava sobrenomes para não confundir Gabrielas e Gabrieis, mas, decorado, o sobrenome era tão só referência, sem sentido. Para ele, contudo, num ambiente com signos e mais signos que desafiariam egiptólogos diante de hieróglifos, sobrenome é mais que simples referência. Maria Fernanda Feijó havia sido sua aluna. Essa experiência com a descendente de uma personalidade do período regencial, pois lhe perguntara e assim teve certeza, para ele, diferentemente do professor, porquanto sempre desconfiado, com exagerado senso de proteção, fazia com que entre Gabrielas e Gabrieis houvesse além de sobrenome algo além. Nesse além, além do nome, o sentido de “depois a gente conversa” escondido na mera coloquialidade de uma locução temporal. Assim, fosse chefe dele o do professor…; o nome Giovana, entre tantas e não apenas uma Giovana despercebida que com as colegas entrava na sala rindo, conversando como estivesse na praça de alimentação de um Shopping e que, com o início da aula, como as colegas, atenta, acompanhava o professor falar sobre Bauhaus… 

Uma semana depois, avista ele o professor na sala de professores. Entre eles, o cumprimento protocolar. Outros professores entravam, permaneciam alguns minutos na sala. Não era de seu temperamento abordar o professor para saber como havia decidido sobre a nota da Giovana. O professor, igualmente, evitou conversar com ele. Enquanto aguardava o início da aula, sentado numa poltrona no canto da sala, ele, consigo mesmo, vendo a movimentação nervosa do professor: “Ele sabe por que a Giovana não ficou com 10,0. Ele sabe que teria razões até para diminuir em meio ponto a nota da Giovana. Ele sabe que a prova dela não tem o que a das amigas dela tem e por isso ficaram com 10,0. Ele sabe que a Giovana poderia ficar com 9,0, ou mesmo 8,5. Ele sabe que se diminuir a nota da Giovana ela fará um escarcéu. Ele sabe que manter a nota da Giovana implica montar um arsenal de justificativas que apenas vão acentuar suas fraquezas. Ele sabe que está numa enrascada. O que ele não sabe é que ele não sabe como sair da enrascada”.

 Ilustração: Nota 10 – Franklin Valverde