formiga_-_franklin_valverde.jpgA coitada daquela formiga teve o azar de estar vagando na cozinha às quase duas horas da manhã, quando eu apareci.

 

Ao vê-la ziguezagueando no branco do azulejo, não pude conter o dedo, o ímpeto de pressionar impiedosamente meu humano polegar sobre ela, antes que a danada pudesse chegar ao traço do rejunte, à próxima placa de azulejo, ao negrume do mármore da pia e se me perdesse nele.

 

Esse assassinato na madrugada me deu peso na consciência e me fez pensar por que as formigas nunca me agradaram.

 

Comecei a não gostar das formigas na tenra infância, com La Fontaine. Eu não conseguia entender por que a simpática formiguinha não era capaz de perceber que estava sendo explorada pela cigarra, que tinha uma vida muito mais feliz e musical.

 

Claro que notei que a fábula tinha um edificante cunho moral, mas era a cigarra quem seduzia o Jamilzinho menino, não a formiga, operária, burocrática, precavida e formal.

 

Às formigas da vida real eu sempre atribuí características ligadas à sujeira. Embora circulem por lugares aparentemente limpos, o vaivém das formigas e o sem número de pequenos objetos que elas são capazes de carregar sempre me causaram um pouco de aflição e nojinho frescurento.

 

Para não ser injusto com essas pequeninas sujismundas, fiz uma breve pesquisa sobre elas e encontrei dados que corroboram minha tese: “Formiga transporta bactérias patogênicas em hospitais”; “a porcentagem de 98,4% é um fator contundente na possibilidade de veiculação mecânica ou biológica de microrganismos”; transportam partículas de ambientes contaminados para locais ou objetos não contaminados e atuam como reservatório de fungos patogênicos ao homem”. Eu, hein? Estou fora! O que fiz na minha cozinha foi legítima defesa!

 

De acordo com as crenças populares, sempre ouvi dizer que esses pequenos insetos aparecem em casa quando estamos prestes a nos mudarmos. Mas eu me mudei recentemente, não quero me mudar de novo! Também há quem diga que quando há formigas em casa é porque pessoas próximas estão com inveja do morador. Se matar uma formiga acarretasse julgamento, júri e banco dos réus, eis aqui mais um argumento que meu advogado poderia usar em minha defesa.

Há uma cidade mineira chamada Formiga, e tenho um amigo de lá, Marildo. Perguntei a ele por que a cidade recebeu esse nome, e ele, depois de hesitar, disse: “Uai, deve ser porque tinha muita formiga lá antigamente”.

 

Pai do céu, que analogia simplória! Com tanto animal interessante na natureza, por que não homenagearam o imponente leão, a majestosa girafa ou o singelo coelho? Se essa moda de batizar o lugar por aquilo que nele há em grande quantidade tivesse pegado em outros lugares, São Paulo deveria chamar-se “Poluição” e, Brasília, “Corrupção”. À rima pobre, ideia paupérrima, nesses casos.

 

Segundo a tradição popular, o nome da cidade de Formiga surgiu graças ao nome do Rio Formiga. Supostamente, conta-se que um grupo de tropeiros que passava pelo lugar resolveu fazer uma parada à beira do rio para o pernoite. Durante a madrugada, o carregamento de açúcar que eles traziam foi atacado e devorado por formigas, episódio que deu nome ao rio e, depois, ao vilarejo, futura cidade, que surgiu às margens dele.

 

Mas nem só de má fama vivem as formigas. Na cidade de São Joaquim, em Santa Catarina, uma das mais frias do país, comerciantes e donos de hotéis creditam a esses pequenos seres de passo sêxtuplo um curioso poder. Dispensando as previsões feitas com recursos tecnológicos, os moradores mais antigos observam a movimentação desses pequenos insetos nos últimos dias do outono. Quanto mais intensa a movimentação deles, mais rigoroso será o frio do inverno. Será necessário, então, reforçar os estoques para receber os turistas.

 

O melhor texto sobre formigas que já li é o conto À imagem e semelhança, de 1968, do escritor uruguaio Mario Benedetti, que narra as desventuras de uma formiguinha que vai passando por cima de um papel caído no chão enquanto tenta reencontrar seu grupo e voltar para seu formigueiro.

 

Ela vai passando por cima do papel, por cima da letra N com um torrão de açúcar; deixa-o cair, levanta-se, ergue o torrão novamente. Depois, vencendo dificuldades, passa pelo A, pelo D, pelo A de novo e, entre tropeços e levantes, segue seu caminho até que, a dois centímetros de sua meta, encontra a morte num impiedoso dedo, humano como o meu.

 

O ruim de tudo isso é que as formigas podem representar, no fundo, grandes lições para nós humanos. Quantas vezes, “a dois centímetros” de nossa meta, não fomos a formiga do patrão na empresa? Quantas vezes, ainda moleques na escola, não fomos a formiga daquele colega valentão mais forte? Quantas vezes nos sentimos esmagados pelo humano dedo do professor naquela prova de perguntas indecifráveis?

 

Em quantos inúmeros momentos somos mera formiga no formigueiro, num país violento, desonesto e injusto como este onde políticos desviam propinas milionárias enquanto as canetas das casas lotéricas precisam ser acorrentadas para não ser furtadas pelos pobres cidadãos “de bem”?

 

Ora, não é para odiar a formiga, esse bichinho idiota, miniatura de operária? Como não detestar a formiga com suas metáforas? Inseto repetitivo, parece gente: nasce, cresce, trabalha, trabalha, trabalha e, um dia qualquer, por uma banalidade qualquer, morre.   No caso da vida humana, só somos mais complexos que esses pequenos bichinhos porque o nosso “trabalha, trabalha” não é só para matar a fome e garantir a perpetuação da espécie, como no caso deles. Na nossa vida, “o trabalha, trabalha” é entremeado por derivações como “paga boleto”, “paga convênio”, “paga IPVA, IPTU, INSS”.

 

Nós, pessoas e formigas, depois de tanto “trabalha, trabalha, trabalha”, num dia qualquer, por uma gripe mais intensa, um diagnóstico maligno e fulminante, uma bala perdida ou um dedo mais forte, perecemos e vamos embora deste mundo sem nem ter descoberto por que viemos. É como no brilhante texto de Benedetti: “então, do alto, apareceu um polegar, um largo dedo humano e, deliberadamente, esmagou a carga e a formiga”.

 

Ilustração: Franklin Valverde