A Bê fez sua primeira grande viagem. Há poucos dias ganhara uma botinha “tipo angélica” (Oh! o mundo do consumo; um bom estudo – que talvez Piaget não tenha pensado – seria sobre o fetichismo da mercadoria em crianças com menos de três anos). A praia, quando ainda sua desconhecida, a encantava por antecipação. Bê rumou para o Balneário Camboriú, em Santa Catarina. Estava no inverno; ou seja, fora de temporada. Para o papai, um bom momento para a solidão ao mar (Hemingway escreveu páginas maravilhosas em Jardim do Éden); para a Bê, escapar da monotonia da escolinha e conhecer – já que sua inteligência primaveril a permite – outros lugares; outras máscaras. Bê começava a descortinar os caminhos da existência; novas aventuras (muitas sem o papai) a aguardam.
Em Camboriú. Chegaram ao Balneário. A viagem foi calma. Um congestionamento em Joinville só para apimentar o humor. A Bê dormiu parte da viagem. No final, como já era de se esperar, ela ficou acordada e irritada com a demora.
– Tem espuma! Vai escorregar aqui! Foram essas as palavras da Bê ao ver o mar pela primeira vez. Estava escuro, o sol havia se escondido há alguns minutos, embora não se pudesse dizer que a noite estivesse fechada; fazia um pouco de frio. Papai, mamãe e vovó foram comer pastel; vovô ficou dando voltas com a Bê na praia.
(O sono após doze horas de viagem. Os assassinos, de Hemingway, fica no meio do caminho.)
A Avenida Atlântica. A Bossa Nova deixou suas marcas. É o que se pode dizer quando se vislumbra a orla em Camboriú. É uma espécie de Copacabana em miniatura. A Avenida Atlântica o calçadão, pessoas correndo de um lado para o outro, o recorte da praia, os morros salientes ao fundo lembram o Pão de Açúcar e seu derredor. Mas há um detalhe: Copacabana, Bossa Nova, anos 50 são sinônimos. A arquitetura em Camboriú dá as mãos a um arrojo pós-moderno (prédios com designers ousados, curvas acentuadas, muito concreto e vidro) e, ao contrário da leveza da Bossa Nova, esses novos tempos reservam o sertanejo. Aí está a música do “novo rico” (o filisteu que desfila em seus Blazers, Picaps, Towner Pick-ups, Ranger Rovers…). Nesse sentido, a cafonice e o brega estão em Camboriú. Nada de papo-cabeça, Bossa Nova e um ar Riviera Francesa. Há, isso sim, certa simplicidade filistéia estampada no rosto das pessoas; ou seja, certa ausência de liberdade e de descoberta, substituída pelo alheamento do celular.
(Bossa Nova é a lembrança de um momento especial na história cultural do país. A música – Chega de saudade – é atual numa referência ao próprio título; não como presença. Essa mini-copacabana é totalmente carente daquilo que deu sentido à famosa praia carioca.)
O sol não apareceu na primeira manhã deles em Camboriú. O céu plúmbeo estimula a reflexão, a contemplação. Bê correu pela praia. Demonstra entusiasmo com suas novas imagens. Vovô a acompanhou um bom pedaço na praia; vovó olhava o horizonte; mamãe mantinha um certo quê de preocupação: ora vasculhava as bolsas, ora chamava a atenção da Bê. O tempo corria, lento. A manhã fluía como se algo fosse acontecer: “- o céu vai se abrir?” Mas o céu não se abriu; e a sensação de que havia uma lentidão e expectativa se manteve.
O passeio na praia transcorreu tranquilo. Após alguns minutos de caminhada, encontram uma gaivota; onde a água do mar encontra a areia. A intenção deles era a de chegar ao limite extremo da praia – um lugar chamado Barra Sul (óbvia lembrança da Barra da Tijuca). É nesse extremo que o rio Camboriú encontra o mar. Ao chegarem à Barra Sul e darem conta da largura do rio, margeiam sua costa alguns metros. Um teleférico em construção (na verdade, em fase de teste) liga essa extremidade a um morro do qual não é possível, da praia, saber o que se encontra em seu topo (uma placa nas paredes da construção faz menção a um parque…). No encontro das águas do rio e do mar, algumas gaivotas se alimentavam de peixes mortos; algumas casinhas de comércio de peixes e petiscos do mar; algumas embarcações pequenas de madeira ao fundo; um pescador, no barco, limpando a rede de pesca davam um ar impressionista à cena. Mas essa impressão foi cortada pelo grito de um homem (uma espécie de arrais), que os chama:
“- Oh! vocês aí; não querem fazer um passeio de barco?
– Não! Muito obrigado!
O homem, um tanto brusco e fútil em seus movimentos, torna à sua normalidade.
Primeiro dia de sol. O cinza do dia anterior foi substituído pelo brilho do sol. Na água do mar, o sol era um ponto rombudo de luz branca, como a tocha ofuscante de luz violeta-pálido com a qual um engenheiro ataca um cano. O reflexo da luz do sol na água dava a sensação de angustia existencial (como se fosse uma cena descrita por Camus). O mar não estava exatamente calmo; as ondas quebravam com uma intensidade não desprezível. A praia, já cedo, estava mais povoada que no dia anterior. Embora os raios solares estivessem beijando a areia e a água do mar, uma leve brisa intimidava os banhistas. As pessoas caminhavam de um ponto qualquer a outro, como se houvesse uma direção física no rumo tomado; mas, de outro modo, como se a imaginação estivesse em transe. A se notar, a quase totalidade da ausência de jovens: algumas crianças; adolescentes; muita gente na faixa dos trinta e daí para diante.
A Bê vestiu um biquíni vermelho com detalhe amarelo nas rebarbas; caminhou para a praia com uma canga estampada. Na praia ela brincou na areia, entrou na água e ria sempre que a brisa batia em seu rosto. Embora não fizesse frio, o sol estava esquentando: alguns minutos ao sol e a pele ficava ardendo. Depois de alguns minutos na água (seu relato é assim resumido: – a água entrou na minha boca; no meu nariz!), a Bê sentiu frio (“- eu quero sair!”): com o choque térmico, ela ficou tremendo; foi retirada da água, vestiu a canga e foi coberta por uma toalha pra se aquecer. Logo em seguida ficou brincando na areia. Vovô e vovó ficaram na água, que chegava até a cintura deles; mamãe ficou brincando com a Bê.
Papai saiu de casa sem disposição para entrar na água. Foi, com a mamãe, comprar o jornal Folha de S. Paulo; sua intenção era a de ler o jornal, e depois passar os olhos sobre As aventuras de Huck Finn. Parou no restaurante e petiscaria Lelo’s. Tomou duas cervejas e ficou, inicialmente, a olhar o movimento na orla. Leu sobre a morte de John Kennedy Jr; e ficou a pensar que, de qualquer forma, foi um acontecimento traumático. Aos 38 anos Kennedy Jr. tinha quase sua idade. “Talvez sua morte simbolize alguma coisa: uma geração que diz pouco; vive frustrada pela comparação com as anteriores, que quase realizaram a utopia; e deixa no ar uma sensação de decadência. É como se o destino dessa geração seja marcado pela melancolia e pelo patético. Se eu estender um pouco o mal-estar que senti pela morte do Kennedy Jr, eu acabo por englobar outros personagens à frustração dessa época filisteia, de culto ao sertanejo. Fitzgerald, Hemingway e outros escritores gastaram linhas para falar sobre o Charleston.
”Céu de fim de tarde: massas branco-pérola de luz sólida, riscadas de vermelho; acima, um grande dossel de nuvens amarelo-ferrugem. Aquelas massas sólidas de luz branca ao pôr-do-sol, como cristal, ao mesmo tempo opacas e límpidas. Uma brisa um pouco mais intensa acompanha o crepúsculo. As montanhas e os arranha-céus, cedo, cobrem o sol; de modo que, antes de serem cobertos pela noite, os raios solares deixam de beijar a praia. Papai novamente no Lelo’s. Ficou sabendo que o garçom que o atendera pela manhã chama-se Alfredo. Ele fora bastante simpático e solícito. À tarde levou apenas o caderno de notas ao Lelo’s. Tomou duas cervejas, comeu uma porção de camarões e pôs-se a escrever. Ao pôr-do-sol, as ondas quebravam bem próxima do calçadão; de onde estava – à uma mesa na calçada, à direta do restaurante, para quem me avistava da praia – enxergava algumas embarcações; uma pequena ilha ao norte; e o movimento dos garçons. Ele era o único cliente naquela tarde.
Enquanto papai estava no Lelo’s, Bê, vovô, vovó e mamãe foram passear. Na volta ficou sabendo que eles foram ao centro, caminharam a pé e passearam numa espécie de trólebus que faz um itinerário turístico. Bê se fartou com o passeio. Fez algumas birras que chegaram a irritar o vovô. Muitas coisas a estavam excitando ao mesmo tempo.
(Na pousada, à noite, papai tentou continuar a leitura de Huck Finn; mas o dia fora cansativo; cedo da noite o sono o pegou.)
Pomerode. Decidiram pegar estrada para conhecer Blumenau. O caminho é de uma beleza rara. Antes de chegarem a Blumenau, passaram por Ilhota, Gaspar e avistaram, pois estavam numa planície, Brusque ao longe. A ideia era fazer uma visita a Blumenau e voltarem por Brusque. No meio do caminho, modificaram nosso roteiro e acabaram indo a Pomerode. Antes de chegarem a Pomerode, no entanto, fizeram um tour em Blumenau; pararam em um centro de compra e compraram roupas para Bê e alguns souvenirs.
De Blumenau, há a se destacar que é uma cidade limpa e calma. Suas construções, em estilo alemão, deixam no papai a impressão de que estão congeladas no tempo. Há um tímido contraste com algo moderno; mas qualquer elevação com uma proposta atual é ofuscada pelo estilo alemão. Pomerode não chega a ser propriamente uma cidade. É mais um cenário germânico montado no Brasil. Papai tem certeza que Pomerode seria uma boa locação para Woyseck, de Herzog. Para ele, ali está o século dezenove bávaro e, provavelmente, sua moral.
Almoçaram e, em seguida, foram ao Zoológico em Pomerode. Bê ficou encantada com o leão, o tigre e o urso. “- Ele é grande, né pai!”. Papai reflete: “Não dá para não dizer que acho chato ver a tristeza dos animais enjaulados; ainda que seja a única maneira de poder vê-los”. O tigre ficou boa parte do tempo de costas; como se quisesse manifestar a sua fúria diante da situação.
Novamente no Lelo’s. Papai gostou do Lelo’s. Não que tenha visto algo de especial no restaurante. Simplesmente porque encontrou um lugar pra me acomodar. Ele e mamãe ficaram alguns minutos da última noite de viagem no Lelo’s. Conversaram sobre a viagem, sobre a Bê, vovô e vovó. Tomaram duas cervejas e comeram uma porção de camarão. De onde papai estava, enquanto falava com mamãe, podia olhar o reflexo das luzes na água do mar: “É uma bela imagem”. Antes de saírem, trocaram algumas palavras com Alfredo. Ele disse que não conhecia São Paulo, mas estava curioso para conhecer. Alfredo era uma espécie de Esteves, personagem da Tabacaria, do Fernando Pessoa.
Essas são as imagens que papai guardou e anotou na mesa do Lelo´s da primeira grande viagem da Bê. O mar tem seus mistérios. Talvez ela esqueça dessa viagem; mas talvez um dia ela diga ao papai sobre impressão que teve ao ver o mar pela primeira vez.
Ilustração: Na praia – Franklin Valverde