soninha_-_franklin_valverde.jpgVocê, parece, não me leva a sério quando digo para você escrever. Você diz que não escreve direito, pois sua gramática não é boa… Bem, volto a dizer, você não é exatamente uma pessoa que não saiba como é o mundo da cultura, da literatura, do cinema; você cultiva essas coisas e, talvez exagerando, você faz delas o seu mundo real. Então, esse mundo não é apenas entretenimento para você; certo? Se você disser que isso não é certo, creio ter perdido tempo conversando sobre coisas culturais com você, conversas nas quais gostávamos de fazer citação da turma da Escola de Frankfurt, de Adorno, da indústria cultural; essas coisas. E você bem sabe como os papos sobre isso davam pau e cada um queria saber mais do que o outro nas festinhas na casa do Samuca.

 

O Regis, bastante inteligente, era cheio de pose, tinha muita leitura e ar professoral; o Ricardo não era de entrar em discussão, mas falava como se soubesse de tudo: repetia como papagaio as avenidas de Praga ou uma rua da periferia de Taboão da Serra; o Tide, por ser o mais velho, tinha bastante afluência sobre todos nós e, por que era fissurado em Jazz, não era chegado em Adorno, que achava o Jazz regressão da audição – por isso o Tide se dizia sartreano; o Cido não entrava muito na conta: falava sempre lugares comuns tipo, segundo Marcuse…; o Samuca, o anfitrião, achava que acompanhava a discussão porque era de arrogância impar e se autoproclamava poeta a la Rimbaud; das mulheres você era a mais agitada e batia de frente quando surgiam conversas com ares misóginos. A esse respeito, o Tide era explícito: “as mulheres não pensam…; é legal o feminismo, a liberdade sexual, mas é isso, hoje elas transam sem culpa, porque quando tem discussão…”.

 

É por gostar de conversar sobre coisas culturais com você que vejo com certo cuidado mais uma polêmica típica do cinema francês: a oposição entre certo cinema que se propõe repetir o esquema de Hollywood – filmes espetaculares, de grande produção – e outro tipo de cinema que defende a autoria como forma de resistência. Assisto a tudo que posso, pois acho uma grande bobagem destituir o cinema americano (digo, Hollywood) de importância. Não se pode dizer que o cinema massificado não traga à tona temas interessantes para se pensar no mundo em que vivemos. Mas sou crítico implacável da produção massificada de Hollywood. Nunca penso em um filme americano (mesmo os independentes) sem considerar a grana que se empata e a grana que se quer ganhar. Por isso, não entro num falso debate sobre interpretações, imagens de grandes astros, efeitos especiais e congêneres. Bem entendido, cinema americano implica em dominação cultural e ao assisti-lo podemos ver quais valores movem aquele mundo e como a fetichização é insidiosa. Esse papo vai longe, e espero que você entenda a minha posição sobre cinema.

 

É óbvio que você pode discordar, mas isso não importa nem um pouco. A discordância é ingrediente essencial para refletirmos sobre muitas asneiras faladas do alto de nossa presunção. O Ricardo não gostava de embate porque preferia exibir o que sabia sem questionamento e com isso, creio, não se dava conta do quanto seus imensos conhecimentos de música não explicavam o porquê de Milles Davis ter experimentado o Free Jazz, o Fusion…, depois de revolucionar a história da música com o Be Bope. Pergunta que lhe fiz e ele respondeu que “eu tinha de ouvir Kind of Blue para saber a importância de Davis” (como sempre, lacônico e impreciso). Mas a discordância é essencial também porque quem a faz, não sendo leviano nem um chato que não sabe o que fala e quer se impor falando mais alto, se põe na posição de justificar por que discorda, e se seu interlocutor for sensível e inteligente, perceberá que o prisma pelo qual ele vê o mundo não é o mesmo daquele visto por outros.

 

Como acredito partilharmos o mesmo mundo cultural, sempre tenho enorme prazer em conversar com você; mas, veja bem, entendo que o mundo partilhado entre mim e você não é apenas um mundo de consumo de cultura. Assim, o cinema e a literatura são partes da minha vida porque, além de alimentarem meu conhecimento, são guias para minhas ações, são guias de conduta, ao invés de deleites para situações ocasionais. Ou, como via muitas vezes no Cido, uma senha para citar e mostrar que sabia sobre cinema polonês ou tcheco dos anos 60. Não vejo Bergman ou leio Proust só para apreciar o cinema e a literatura que fizeram, mas também porque sinto na maneira como os personagens criados por eles me ensinam a viver. E é nessa medida que gosto de falar sobre Bergman ou Proust com você.

 

Passei para você a carta que escrevi para o Regis só para te instigar. Bastante orgulhoso e vaidoso com seus conhecimentos literários, em carta anterior ele me escreveu que estava se tornando especialista em Agatha Christie, pois havia lido todos os romances dela. Veja como há nisso certo exagero dele, a Agatha Christie publicou 80 livros… Mas lhe perguntei em especial o que havia achado de O assassinato de Roger Ackroyd. Ele me respondeu, contou a trama direitinho e, com seu jeito professoral, fez algumas observações gerais sobre a maestria dela na arte de envolver o leitor numa trama policial; mas me asseverou que não era o romance dela que mais apreciava: suas preferências recaiam sobre Assassinato no Expresso Oriente e O caso dos dez negrinhos. Questão de gosto, sei disso, não li todos os romances dela e confesso que os títulos por vezes me confundem, mas tenho boa lembrança de Assassinato na casa do pastor, no qual o detetive não é o famoso belga Hercule Poirot e sim a simpática solteirona Miss Jane Marple.

 

Na sequência de nossa correspondência, contudo, lhe perguntei se ele tinha percebido a sutileza da narrativa a respeito de quem havia assassinado Roger Ackroyd. O Regis enrolou na resposta e deixou claro não ter notado que quem matou Roger Ackroyd foi o próprio narrador, o Dr. James Shepard. Eu então o fiz ver que ele não havia percebido o que faz desse livro um livro notável. Para muitos é a obra-prima dela, justamente pelo modo como ela conduz o leitor. Caso este não saiba antecipadamente, precisa de esforço de atenção para ver que o próprio narrador é o assassino. E concluí com um conselho: “Se o que lemos não fica, é porque não nos é importante; e, se não nos é importante, não valeu a pena ter lido”.

 

Veja então: se você disser que esse mundo não é apenas consumo, distração com filmes bacanas e romances badalados, você há de convir que escrever é, antes de tudo, um “estado de espírito” bem presente em você. Por isso, quando falo para você escrever, acredito piamente que pela escrita um espírito inquieto e não pueril como o seu escapa à boçalidade da existência. Se você escreve bem ou não isso não me interessa. Escrever bem, para muitos que assim pensam de si mesmos, é fake; e nunca sabemos, nem podemos saber, se supusermos que não escrevemos bem, qual é o efeito de nossa escrita em quem nos lê. Cada leitor forma, a partir de sua própria experiência de vida, uma impressão única sobre o que escrevemos. Interessa para mim que você perceba na escrita um meio de plasmar suas experiências. Ou ainda, quem a ler poderá ter pela sua narrativa um motivo para ver as coisas no mundo de outra maneira. E isso está absolutamente fora do controle de sua escrita, e de qualquer escritor.

 

Caso contrário, você vai ficar lendo, lendo, lendo… ler Fitzgerald, ler Hemingway, ler Sartre, ler Simone de Beauvoir, ler Henry Miller, ler Anaïs Nin, ler Lillian Hellman e vai continuar lendo… e não notará como essas pessoas viviam a escrita e escreviam aquilo que viviam; escrever é estar num boteco e dar um significado literário para alguém cruzando a rua, como fez Hemingway em Paris é uma festa (o registro, tão só o registro, mas cujo significado pode ir além do mero registro; não esqueça que, automatizados, fazemos isso com a fotografia, sem refletirmos o significado de uma imagem amanhã, sem imaginarmos que somos Alfred Eisenstaedt); é plasmar, pela escrita, aquele momento único. O momento em si, pode ser, não teve a intensidade descrita por Hemingway, mas, para quem o ler, ele revelou alguma coisa sublime em uma situação prosaica. Isso funciona como uma desvelação.

 

As pessoas, e os sentimentos que temos por elas, passam, mas a escrita fica. Por isso digo para você que escrever é tão interessante quanto viver uma dada situação com uma pessoa. Você aguardou com muita ansiedade sua viagem recente a Portugal. Lá, em Lisboa, encontraria, depois de muito tempo, sua amante, a Nancy. Lembro, aqui, como foi triste para você a ida dela para outro continente. Você mobilizou mundos para revê-la. Poderia fazer qualquer outro tour na Europa, Lisboa não seria prioridade senão para ver a Nancy, mesmo que por poucos instantes. Assim, fez parte de sua programação uma estada lisbonense, e você em diversas situações me fez ver a expetativa que tinha para esse encontro. Você sabia que não a teria, mas como lhe seria prazeroso estar com ela um fim de semana apenas. Se você anotou seu desencontro com a Nancy em Portugal (sim porque conforme você disse antes da viagem, a Nancy estaria em Lisboa quando de sua ida à Europa, e quando você chegou, no final de semana em que você lá esteve, ela foi para a França, Paris, e lá passou o fim de semana), você plasmou sensações que uma bela fotografia não pode plasmar e, eu imagino, você não é melhor fotógrafa do que escritora. Do contrário, você não registrou uma experiência na qual, para além de sua frustração, mostraria como alguém que amamos é capaz de gestos que, quando contados, escapam ao sentido do prazer experimentado no passado, e igualmente contado (conversando comigo depois, você sempre manteve o ar de quem não gostava de tocar no assunto, e embora não escondesse a decepção, também nunca me disse o que se passou, se já tinha ido para Lisboa sabendo que não encontraria a Nancy).

 

Assim, cara Soninha, você pode muito bem pegar um lápis, um papel e escrever. O valor literário daquilo que escrevemos é dado pelas outras pessoas. Pode ser que você não escreva bem, não digo que sim nem que não; mas tente, faça esforço e talvez um dia você venha a ter juízo diferente sobre sua escrita; talvez você tenha segurança para dizer que não escreve tão mal como agora você afirma. Mas não se esconda na suposta incompetência de não saber escrever, pois sua gramática não é boa, para justificar que não vai escrever sobre suas experiências no mundo. 

É isso; não pense que vai ser uma Lillian Hellman; pense apenas que é a Soninha que está escrevendo.

Ilustração: Soninha – Franklin Valverde