Brigas eram comuns no Mundo Novo, bairro rural para o qual, na infância longínqua, minha família havia se mudado, após meu pai haver adquirido um armazém de secos e molhados que um de meus irmãos mais velhos tocaria: recém operado de apendicite, não conviria a ele continuar nas brutas lides do campo.

Como eu dizia, brigas ali eram corriqueiras. Especialmente nos fins-de-semana, a começar nas tardes de sábado e avançando pelo domingo. E brigas estimuladas, na maioria das vezes, por generosas doses de cachaça e copos de cerveja. Mas naquele dia, um domingo, período da manhã, defronte ao estabelecimento comercial do Jorge Takeda, uns cento e cinquenta metros abaixo do nosso, a escaramuça chamou a atenção, talvez pelo ineditismo da cena.

Claudionor Soares, não me recordo bem por que, se desentendeu com Filomeno, um trabalhador avulso, solteiro, que ganhava a vida labutando em roças dos outros.

Arma muito comum e usada na região, naquela época, era a faca, certamente pela dificuldade dos matutos de comprar uma garrucha ou revólver. A faca, denominada peixeira, era utilizada principalmente para picar fumo, mas sem dúvida se escondia em todo portador um interesse de exibição e quiçá de eventual utilidade como meio de defesa. Ou de ataque.

Puxar a faca para alguém não era coisa muito usual. Mas foi o que Claudionor fez naquele dia, ameaçando o Filomeno e provocando a intervenção da turma do deixa disso.

Filomeno, mais novo e mais ágil, conseguiu agarrar o braço de Claudionor e desarmá-lo, tomando a faca e passando ele próprio a brandí-la contra o adversário, ao mesmo tempo em que lhe estapeava o rosto com dois golpes sucessivos da mão esquerda, um com a palma e outro com as costas da mão.

Claudionor, apalermado, se pôs a correr perseguido pelo desafeto, que sob os apupos e risos da assistência lhe esfregava a lâmina da faca no traseiro. A faca, essa sabe-se que foi posteriormente guardada pelo dono do boteco, para evitar nova utilização em outras desavenças.

O episódio ficou célebre no bairro. Claudionor, de início, passou a evitar vir ao pequeno povoado. Sentia-se envergonhado. Aos poucos, no entanto, foi criando coragem e vindo, vez em quando, para fazer algumas compras ou beber cerveja.

Arrendatário de terras do senhor Takahashi, casado e com três filhas solteiras, Claudionor cultivava algumas roças, principalmente de milho e algodão. Tinha por volta de quarenta e cinco anos.

Já o seu antagonista, Filomeno, como eu já disse era solteiro, e tinha, quando muito, seus trinta anos. Naquela quadra, logo após o episódio com Claudionor, Filomeno passara a trabalhar em plantações de algodão nas cercanias da cidade de Guaraçaí, e vinha vez ou outra, nos finais de semana, para o Mundo Novo, pois no bairro tinha muitos amigos e conhecidos, e com eles vinha prosear e tomar suas biritas das horas de folga.

Após o entrevero, nas ocasiões em que deixava seu roçado e se dirigia à vila Claudionor era objeto dos gracejos dos companheiros de cerveja ou do jogo de malha; de forma impiedosa dirigiam-lhe brincadeiras relacionadas ao que acontecera naquele domingo, entre ele e Filomeno. Os mais afoitos, em clara alusão aos tapas que ele tomara, até se atreviam às vezes a lhe dizer que seu pai tinha chegado ao bairro, e indagavam-lhe se não ia pedir-lhe a bênção. Claudionor rechaçava as chacotas com a cara enfezada, rogando que o deixassem em paz.

Mas a verdade é que o impulso da vida apaga as coisas pouco a pouco, e o Mundo Novo, ao cabo de sessenta dias, mais ou menos, terminou por sepultar de vez o incidente.

                                               ***

Passaram-se os meses. Melhor dizendo, passou-se quase um ano. 

Era sábado e haveria, à noite, um baile de casamento na casa de Manuel David. Uma filha sua se casara de manhã na sede do município, e o arrasta-pé no terreiro certamente iria movimentar bastante a Pena Branca, localidade em que Manuel morava, em terras de seu irmão Caitano.

O baile esteve de fato animado, e nele alguns dos partícipes viram Filomeno, que dançava com alegria ao som do conjunto musical costumeiro nessas ocasiões: um sanfoneiro, que ocasionalmente também cantava, um percussionista no pandeiro e um tocador de violão para fazer as vezes de contrabaixista.

A festa transcorreu sem incidentes, e lá pelas três da madrugada Filomeno se dispôs a ir embora. Saiu sozinho, pelo caminho beirando uma cerca, para os lados da Jacutinga.

Após raiar o dia, escutou-se às primeiras horas da manhã, entre os fregueses de nosso armazém e meus irmãos mais velhos, a notícia lúgubre de que Filomeno havia sido tocaiado por Claudionor Soares na Pena Branca, de madrugada, quando voltava do baile na casa de Manuel David: morrera atingido por vários golpes de faca… O corpo fora encontrado logo aos primeiros albores, emborcado sobre uma poça de sangue meio coalhado.

É isso aí, leitores. Como certamente diria um certo poeta português que andei lendo, a vingança é às vezes um prato que se come frio…

                                               ***

Lembro-me de que Claudionor Soares não era figura de bons modos. Alguns anos antes dos fatos ora narrados, quando minha família ainda morava na Jacutinga, ele tinha golpeado com um porrete um pequeno cachorro de minha casa, e o pobre animal passou o resto da vida manquitolando de uma patinha dianteira.

Quanto à vítima, Filomeno, em minhas recordações da infância pouco me lembro dele. Bem me recordo apenas de que ouvi, após o crime, a freguesia do armazém comentar que ele gostava muito de bailes; sequer suspeitava de que aquele baile, comemorativo do casamento da filha de Manuel David, seria o último de que participaria  —  pelo menos na vida presente e aparente.

Jamais me esqueci também de que uma cruz de madeira foi erguida no exato local onde a vítima teria tombado. Algum tempo depois do assassinato meu pai comprou o sítio vizinho ao de Caitano David, tio da moça que se casara na véspera do dia fatídico. E por isso nas minhas lembranças figura também aquela cruz, que vi várias vezes, destacando-se sobre uma pequena elevação do terreno…