nene_-_foto_de_jamil_alves_-_a.jpgQuando Nenê chegou, eu tinha 28 anos, e ela 32 dias. Foi no dia 15 de dezembro de 2003, e de chofre fomos dominados por um caso arrebatador de amor à primeira vista. Pusemos os olhos um no outro na garagem de um prédio na Rua 11 de Junho, na Vila Clementino, onde vivi um tempo brevíssimo longe da Mooca. A partir daquele momento, tive a plena consciência de que minha vida estaria, para sempre, dividida em duas partes: a.N. e d.N. (antes da Nenê e depois da Nenê).

 

Eu consigo recordar com grande clareza os olhinhos daquele bichinho indefeso, acuado, branquinho, branquinho… veio com ela também um paninho amarelo e malcheiroso – acho que tinha o cheiro da mamãe e dos oito irmãozinhos dela. Mas o amor foi tanto, tão forte e instantâneo que o problema do odor era totalmente secundário.

 

Naquela mesma noite, saímos para procurar algum petshop 24 horas. Voltamos com caminha, colchãozinho, miminhos, bifinhos e todos os sufixos de diminutivo que um amor assim requer.

 

Ela chegou animada e bem louca feito todo filhote, com aquela alegria frenética e contagiante. Quase toda branca e com pintinhas pretas (especialmente uma em forma de quipá, no alto da cabeça), criou hábitos engraçados, como roer paredes e canos e, quando descoberta, ficar “escondida” embaixo da mesa como se não a estivéssemos vendo – todo dono de cachorro já reparou que, se o cão não está nos vendo, ele acha que não está sendo visto? Cães compartilham com as crianças pequenas essa característica curiosa e tão engraçada.

 

Nenê se dava muito bem com a solidão. Nos seus primeiros anos de vida, a casa ficava muito tempo vazia de humanos. Ela sempre ficou muito bem sozinha, sempre foi silenciosa, coisa rara era fazê-la latir. Aliás, a única maneira de isso acontecer era mostrar a ela as cerdas verdes de uma vassoura velha que tínhamos no canto de um armário – ela devia pensar que aquilo era algum bicho monstruoso.

 

Nenê era muito de boa, como se diz hoje em dia. Imponente, altiva, doce e linda. Em 2004, ganhou agradecimento na minha dissertação de mestrado. Lá estava ela, entre pessoas, recebendo essa honraria. Como eu costumava chamá-la de “Nenê mais linda”, acabei criando um nome de gente para ela na dedicatória do mestrado: Nenemah Lynda! E até hoje há quem pense que eu estava agradecendo a uma amiga humana e estrangeira.

 

Para quem ama os cães como eu, é muito pesado perceber que o tempo passa muito mais rápido para eles que para nós, humanos. Em poucos meses, eles deixam de ser bebês. Depois de um ano mais ou menos, um cão já é um jovem adulto; mais um pouco, um adulto pleno e, logo depois, um cão idoso. Se fosse humana, Nenê agora estaria ainda na fase de pensar em namoricos, tatuagens e roupas da moda e vivendo às custas dos pais. É muito difícil ver um filho cão fazer-se mais velho tão rapidamente diante de nossos olhos sem que possamos fazer absolutamente nada além de amá-los, amá-los, amá-los… E só.

 

Quando jovem, Nenê tinha o hábito de subir em mim. Quando eu me aproximava dela, ela se levantava, ficava em posição bípede-vertical, colocava as patas dianteiras no meu ombro, se espreguiçava e me dava uma lambida. Poucos anos depois, começou a subir somente até a altura do meu ventre, me deixando com a barriga roxa algumas vezes – que patada doída ela tinha. Eu, então, me curvava para frente como numa saudação coreana e ela me dava um beijinho. Com a chegada da maturidade, sem que nos déssemos conta, ela parou de subir. Eu, desde então, me ajoelhava para beijá-la.

 

Minha Nenezona gostava de passear na rua, mas também adorava ficar em casa curtindo preguiça. Nossa, nós éramos muito parecidos, de verdade. Bonachona, ela nem ligou para a chegada dos três gatos em casa quando já tinha 7 anos, nem para a do Miguel em 2014, quando ela já estava com quase 11. Deve ser porque sabia da importância que tinha na minha vida e do amor inabalável que eu sentia (e sempre sentirei) por ela.

 

Em primeiro de março último, Nenê farejou a casa toda. Era habitualmente farejadora, mas naquele dia farejou mais que o habitual. Ficou me olhando enquanto eu tomava banho, deitou aos meus pés enquanto eu digitava emails. Deixou que Miguel a agarrasse e fizesse a maior farra – nossa, que amizade linda eles tinham! – Voltou a farejar mais e mais, aproximou-se calmamente de cada um dos gatos, farejou-os também. Comeu toda a ração, todos os biscoitinhos, bebeu muita água, fez seu xixi no lugar certo como de costume. Na manhã seguinte, enquanto eu ligava para o petshop para agendar seu banho semanal, ela se foi. Encontrei seu corpo deitado no mesmo lugarzinho de sempre, um de seus cantinhos favoritos da casa, perto da máquina de lavar. Por um breve momento, pensei que pudesse estar apenas dormindo. Sem qualquer sintoma, sinal ou indicativo de problema, Nenê parou, se foi. Deixou de funcionar, simplesmente.

 

Não sou capaz de contar quantas vezes chorei e me desesperei desde então. Miguel pergunta por ela, diz que ela virou uma estrelinha no céu, mas, como eu, tampouco se conforma. “Os cães vão embora antes, filho. Eles já nascem sabendo que para viver é preciso pouca coisa, muito amor no coração e simplicidade na alma. É por isso que eles se vão de nós tão cedo”.

 

A parte triste e escrota dessa vida besta da gente é que nada nem ninguém nos prepara para as perdas, ninguém nunca nos avisa a tempo quando o fim se aproxima. Se pudesse, acho que eu esganaria todas as pessoas que, diante do ruim, nos dizem que “passa”, que “vai passar”. A intenção é até boa, mas a dor da perda de um filho de quatro patas não passa, não passa agora, não passa nunca. É uma dor profunda, horrorosa, insana. Se você perdeu seu cão e o amou verdadeiramente, saiba: não passa!