Religiosamente, antes do sono, tomo um livro da estante para ler enquanto não adormeço. Quase sempre um romance, mas, por vezes, me vem a curiosidade de reler, folhear, algumas páginas de relatos de viagem. Em dias recentes fui despertado pelas bordas de As singularidades da França Antártica (1557), de André Thevet, o que me levou a História de uma viagem feita na terra do Brasil (1578), de Jean de Léry, e a Duas viagens ao Brasil (1557), de Hans Staden. A leitura desses livros me instiga a imaginação antes do sono. Antes de dormir, devaneio sobre como aventureiros europeus viam e descreviam povos com hábitos tão diferentes num canto tão distante do… mundo.
Gabriel Carneiro escreveu o romance Olhando para as estrelas só vejo passado (Ed. Patuá, 176 págs.). O livro integra a coleção Futuro Infinito; ou seja, trata-se de uma obra que se insere no catálogo ficção científica. Um ser de um planeta de uma galáxia distante visita a Terra e escreve um diário de bordo. Nesse diário, suas impressões sobre o que encontrou num lugar tão distante. A primeira coisa que me despertou com a leitura de Olhando para as estrelas…: li-o como estivesse lendo Thevet, Léry, Staden… – alguém distante chega a um lugar desconhecido e procurar reter por meio da escrita o que viu. Com efeito, vi menos Olhando para as estrelas… como ficção científica do que como fantasia sobre as aventuras de um viajante de “terras” além galáxia.
A narrativa do viajante, de qualquer forma, não assume a forma dos relatos de Thevet, Léry e Staden, pois Gabriel lança mão de um engenhoso artificio. O diário do viajante foi encontrado ao acaso por Gabriel Carneiro (duplo do autor) “em um mercado aberto muito popular no quinto quadrante da galáxia em que morava”. O diário encontrava-se incompleto e o que restou foi traduzido por Gabriel Carneiro (o duplo do autor) a partir da “língua” do narrador, que, por sua vez, traduziu uma das línguas, o português, do planeta visitado. O que se exibe, então, é um relato em terceira mão. E num relato em terceira mão, traduzido, se tem a tradução da tradução do que o viajante interestelar havia visto. De modo irônico, inegável pensar na máxima: tradutor é traidor…
Volto então à minha leitura dos aventureiros do Dezesseis. As narrativas de Thevet, Léry e Staden fazem pouco esforço para exibir ao leitor como se deu a compreensão da língua dos nativos além mar. Nisso, nada de imaginação, a comunicação, de fato, se deu. Mas, como em tão pouco tempo aprender uma língua absolutamente exógena em situação na qual, ao fim e ao cabo, se estava em um campo de batalha? Não sem um dedo de sarcasmo: teriam os Tupinambás a mesma facilidade para aprender o francês ou o alemão? Oh, segredos e caprichos da tradução, suas cumplicidades e traições (nas séries Perdidos no espaço, Jornada nas estrelas…, tudo se revolve e todo o universo fala inglês rsrs).
Uma observação, então, sobre o romance de Gabriel. Ele teria, num primeiro olhar, o propósito de ficção científica, mas guarda, calculadamente ou não, semelhança com os relatos de aventureiros europeus que estiveram no Brasil no Dezesseis. A escrita é direta e principalmente descritiva. Segue um fluxo que prende o leitor com a riqueza de detalhes e o esmero nas descrições. E, enfatizo o artifício da tradução, o mundo descrito não é outro senão a própria Terra em que vivemos e… quiçá conhecemos, pelo “olhar” de um extraterreste.
Ora, se Olhando para as estrelas… é rico em minuciosas descrições estranhas aos olhos de um ser de outro planeta, assim como os relatos de Thevet, Léry, Staden o narrador não expressa incertezas na decodificação das imagens, dos sinais, dos espaços nos quais circunda. Mas o que ele vê, o narrador, é o que nós, que vivemos na Terra, vemos e … quiçá conhecemos. Em dado momento da narrativa o narrador faz menção ao modo como aqui na Terra o espelho tem uma importância que não tem em seu planeta. E nisso o quanto há de ironia: o planeta que ele vê espelha o que efetivamente vemos, sem qualquer problema de traição na tradução do que vê. Dos escritos de Thevet, Léry e Staden jamais teremos a garantia desse espelhamento, uma vez não podermos ter a visão em perspectiva de um Tupinambá do Dezesseis.
Menciono, de qualquer forma, uma passagem do romance que me parece ilustra bem como o livro de Gabriel comporta ironias com respeito à linguagem. Em determinado momento, o narrador conta ter encontrado objetos de uma prática esportiva, o futebol. Ocorre que a palavra “futebol” para o narrador tem significante, mas não significado. Ele, o narrador, não descreve o referente para o que para ele seria o futebol. Achei essa passagem interessante e novamente tenho em vista os ancestrais no continente “descoberto” pelos europeus; no caso, os astecas e maias jogavam o que para os primeiros era o “tlachtli” e para os segundos o “pok-ta-pok”: ambos, diferentes entre si, não obstante, guardavam semelhanças com o que hoje conhecemos com o nome de “futebol”.
Ao ler a narrativa de Olhando para as estrelas… fiquei imaginando como alguém de outro planeta daria sentido à palavra “futebol” sem ter nenhum referente para a palavra. Claro, o romance de Gabriel pode ser lido como uma ficção científica de teor satírico. Algo como as fantásticas viagens de Gulliver, de Jonathan Swift. E assim como fantasia enovelar o leitor num mundo em que verossimilhança e imaginação se entrelaçam. Portanto, o narrador não precisaria descrever o que é o futebol, tanto quanto eu também não tenho referência para descrever como o tlachtli era jogado entre os astecas.
Ouvi uma vez de um professor de filosofia que a escrita egípcia nas paredes poderia ter similaridade com as pichações em viadutos nos grandes centros urbanos hoje. Pois, se uma hecatombe destruísse a civilização atual, e seres de outros planetas visitassem a Terra num futuro distante, ao encontrarem aqui escombros de paredes egípcias e de viadutos de hoje poderiam dar ar de sacralidade a hieróglifos e pichações na mesma medida.
Gabriel Carneiro nos brinda, assim, com um livro que carrega uma curiosa ironia. O ser de um planeta distante que visita a Terra a enxerga como a enxergamos. Ele, contudo, não sabe mais sobre futebol do que eu sei sobre o estranho jogo de… futebol dos astecas e maias.
Humberto Silva é professor da FAAP, critico de cinema e membro da Abraccine.