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Viajando no período de férias, ele e ela ficaram duas semanas sem ver a Laika, a cadela que, enquanto estavam ausentes, protegia a casa. Em viagens assim, a moça que arrumava a casa, a cada dois dias, punha ração e trocava a água da Laika. Ao voltarem, foram, como sempre acontecia, imediatamente recebidos com alegria pela Laika, que, também como sempre acontecia, tinha o comportamento habitual alterado pelos dias em que não os tinha presentes na casa. Isso ele e ela percebiam, e percebiam também que logo a Laika voltava ao comportamento habitual.

 

Ele e ela, tempos depois, conversaram sobre um episódio singular ao dia seguinte à volta daquela viagem. O comportamento canino e seus segredos. A etologia é uma ciência imprecisa. O etograma canino é uma projeção humana. Descreve não mais que as expectativas de nosso gênero sobre o porquê de um cão agir de um modo ou de outro. Uma resposta padrão: a vantagem que teria para o aumento das condições de sobrevivência. Mas, apenas por especulação fazemos afirmação sobre como se forma a visão de um cão. A Laika dá sentido ao que vê? Ou o sentido que dá às coisas circundantes resulta antes do olfato? Na escuridão total de uma noite de lua nova, a Laika sempre encontrava uma bolinha de borracha que ele arremessava numa mata fechada cinquenta metros adiante. Ele, intrigado com a facilidade com que a Laika encontrava a bolinha sem que ele mesmo na escuridão pudesse ver a trajetória descrita se perguntava se a Laika prescindia da visão e se orientava exclusivamente pelo olfato no meio do mato. A bolinha, da mão dele, fugia completamente a qualquer ângulo de visão possível da Laika, e a Laika estava diante de tantos estímulos além da bolinha que ele retinha na mão. Ele e ela, então, meditaram sobre o comportamento da Laika. Ele e ela, na conversa, intuíram que a Laika dava respostas variadas em situações diversas. Alegria, tristeza, fúria, serenidade, indiferença, afeto, malícia, nervosismo, simpatia, antipatia, faziam parte do dia a dia da Laika. Ele e ela conversaram sobre, também, como é notável o modo pelo qual alguns humanos se relacionam com os cães. Como transmitem aos cães sentimentos que não sabem que respostas terão. Ele, em relação à Laika, é circunspecto. Tem pouca paciência para lambeção. Ela trata a Laika como se fosse uma criança que ainda não soubesse falar. “Mamãe te ama, filhinha; olha que linda! Mamãe trouxe comidinha; vem pra cama com a mamãe”. Mimos, carinhos, toda atenção.

Com ele e ela em casa, a Laika dormia na sala, num cantinho que lhe fora especialmente reservado, ao lado da cabeceira do sofá. Exausto pelo retorno da viagem, antes de ir para a cama, no sofá, ele folheou até o sono chegar algumas páginas de Albertina desaparecida, de Proust. Além de Proust, cinco ou seis livros dormiram tranquilamente repousados sobre o sofá. Na conversa tida entre ele e ela tempos depois, em tom de humor e incredulidade, descreveram o espanto ao se depararem no dia seguinte à volta da viagem com Proust despedaçado pela Laika. Pedaços de Proust estavam espalhados pela sala, enquanto a Laika, do cantinho que lhe fora especialmente reservado, olhou-os como se, projeção humana, culpada, expressasse simultaneamente um misto de vingança e vergonha pelo que havia feito.

 

 

Ilustração: Laika – Franklin Valverde