caminito_foto_fv001.jpgFui recentemente, e pela primeira vez, a Buenos Aires, aproveitando algumas milhagens que acumulei ao longo de vários meses de utilização (necessária!) de cartões de crédito. Apesar da rivalidade secular existente entre Argentina e Brasil, rivalidade essa que não existe apenas no futebol, confesso que apreciei o caráter e a simpatia dos portenhos, apontados por muitos brasileiros como os únicos argentinos chatos, pois os habitantes das demais províncias seriam mais lhanos no trato e agradáveis. Ora, se assim é, a Argentina deve realmente ser considerada país-irmão, pois mesmo os portenhos (ou bonairenses), no meu sentir, são bastante cordatos e atenciosos. Alguma eventual conduta fora desses parâmetros é encontradiça também no Brasil.

Até o final da década de 1950, a capital argentina levou a palma de a maior cidade da América do Sul. Conquanto tenha sido suplantada por São Paulo, sem dúvida alguma continua sendo uma metrópole de inegáveis valores culturais e artísticos. Durante a primeira metade do século XX, ela foi ponto de referência na América Latina. Lembro-me de uma crônica de Lima Barreto, escrita em 1915, em que o grande escritor carioca censurava as “tolas vaidades” dos “taumaturgos políticos” que procuravam a todo o custo imitar no Rio Janeiro a grande cidade do Prata, em detrimento de nossas peculiaridades geográficas e sociais.

Há paralelos interessantes nas Histórias de Argentina e Brasil, sem falar no fato de que ambos os países foram colonizados por europeus da Península Ibérica, assim como receberam, nos séculos XIX e XX, grande afluxo de imigrantes, provenientes principalmente da Europa. Da mesma forma que o Brasil dos tempos coloniais, a Argentina, antes da Independência em 1816, foi também invadida por estrangeiros; a própria região de Buenos Aires foi tomada em duas ocasiões por tropas britânicas, heroicamente rechaçadas nas duas oportunidades. E os jesuítas, que participaram da colonização nos dois países, em certo momento histórico foram de ambos expulsos de forma traumática, fato que no Brasil se deu na segunda metade do século XVIII, quando era primeiro-ministro português o famoso Marquês de Pombal.

Numa das noites que passei na capital portenha, ao caminhar por uma das avenidas que demandam a Plaza de Mayo (não me recordo exatamente qual era), fui surpreendido por uma grande manifestação popular que literalmente tomava toda a larga via pública. A um rapaz que parecia estar participando, indaguei se aquilo era alguma manifestação trabalhista. Ele respondeu que não, e depois de algumas dificuldades de comunicação, pelo fato de ele falar muito rápido, acabei entendendo que a passeata não tinha nada de sindical: tratava-se, na verdade, de um movimento do que ele chamou de “pueblos originarios” (povos originários), isto é, os indígenas, habitantes originários de todas as Américas. Eles aproveitavam, para sua demonstração, exatamente as comemorações do Bicentenário da eclosão da chamada Revolução de Maio, que levou à independência da Argentina em relação à coroa espanhola.

Ao chegar à Plaza de Mayo, defronte à Casa Rosada, tive naquele dia a oportunidade de assistir, no meio de uma multidão, ao final de um grande show, com discursos e músicas típicas. Ali vi, emocionado, um líder indígena peruano contar que viera em caravana desde seu país, a pé, a fim de participar daquele encontro. Após o show, vi como ironia uma inscrição latina num prédio público adjacente à Praça (e a inscrição estava ao lado de uma plaqueta em homenagem a San Martín, herói da Independência platina): Benedic hereditati tuae — “Bendiz o que recebeste [dos antepassados]”. Ou seja, as autoridades incitando os cidadãos a indiretamente bendizer os antepassados, esquecendo-se de que muitos dos antepassados daqueles “povos originários” foram historicamente humilhados e dizimados para a formação do Estado argentino. Um dos presidentes da segunda metade do século XIX ficou tristemente célebre por promover guerras genocidas contra os índios da região da Patagônia. Por associação de ideias, não pude então deixar de recordar alguns trechos da célebre carta que o chefe indígena Seattle enviou em 1855 ao presidente norte-americano, dando ao grande chefe “civilizado” uma autêntica lição de amor à Natureza, bem como de verdadeiro apreço pelos antepassados e desvelo em relação ao bem-estar das gerações futuras: “A água dos rios que cortam nossas florestas não é apenas água: é o sangue dos nossos antepassados (…) Ensinem às suas crianças o que ensinamos às nossas: que a Terra é nossa Mãe; tudo que fizermos à Terra, estaremos fazendo a nós mesmos”.

É verdade que no Brasil as coisas não foram muito diferentes, relativamente àqueles aspectos tenebrosos da chamada “colonização”. É mais um paralelo na História dos dois países, sem dúvida. Ambos têm uma grande dívida a resgatar perante seus pueblos originarios.

 

J. Dantas de Oliveira é advogado.

 

 

Foto: Franklin Valverde. (Caminito, Buenos Aires)