cinema_que_nao_se_ve_-_divulgacao_-_a.jpgAna Paula Sousa, jornalista voltada ao mundo do cinema, publica O cinema que não se vê (Fino Traço, 278 p.), cuja origem é uma pesquisa acadêmica de doutorado. No título, sem qualquer sentido irônico, embora assim se pudesse conjecturar, a ampliação do sentido da palavra cinema – sem que o verbo “ver” seja desconsiderado. Quem vê uma sala de cinema, vê o cinema, e depois vê o filme no cinema (poderia escrever assim, explorando a metonímia: vê o cinema, e depois vê o cinema…).

  Para que um filme (cinema) seja visto, é preciso que haja um cinema (sala). No título do livro, então, uma vigorosa pesquisa sobre o que não se vê na sala de projeção, quando se vê um filme: produção, distribuição e chegada do cinema ao cinema. No título, ainda, a palavra cinema, para tratar do tripé acima, é genérica. No subtítulo, assim, o recorte: cinema brasileiro do século XXI. 

 

Até o advento da televisão, bem sabido, o cinema era visto por meio da projeção numa tela em parques, quermesses, cafés, nickelodeons, salas… A chegada da televisão meio século depois, pois, foi um ponto de inflexão e gerou uma nova situação para o cinema. O cinema, a palavra, cuja origem tem sentido ambíguo, teve a ambiguidade ampliada e em consequência a entrada em cena de novos atores. No século XXI, nova inflexão, novos atores em cena, e a chegada do streaming. 

 

Como explícito no subtítulo do livro – “A guerra política por trás da produção de filmes brasileiros no século XXI” –, Ana Paula tem um leque de questões em seu horizonte bastante diverso daquelas dos primórdios – o primeiro cinema – para tratar dos mais variados interesses que levam o espectador a ver o cinema no cinema ou a ver o cinema fora do cinema. Com o streaming, uma nova “narrativa” na história. A palavra cinema no século XXI, conquanto se suponha denotar o que significava no XIX, tem sentido que não permite afirmar que se esteja diante do mesmo acontecimento da projeção dos Lumière, nos estertores do século XIX, a bela época. 

 

Embora o recorte para a pesquisa esteja bem explicitado no subtítulo, por inevitável economia da redação, Ana Paula retrocede no tempo para situar o leitor. Alinhava, assim, paralelos com a maneira pela qual a produção, distribuição e exibição foram regulamentadas no Brasil ao longo do tempo. Trata-se, portanto, de um trabalho de fôlego, em que importantes estudiosos do cinema brasileiro são mobilizados para se entender as injunções que norteiam seu recorte. Pela necessidade de uma pesquisa exaustiva com estudiosos que se dedicaram às decisões que regulamentaram a atividade de cinema no Brasil (o setor, termo frequente no livro), registro uma ausência, a do trabalho de André Piero Gatti, Distribuição e exibição na indústria cinematográfica brasileira (1993-2003). Entendo que Gatti completaria ao lado de José Inacio de Mello Sousa, Tunico Amâncio, Arthur Autran, Afrânio Catani, Anita Simis, José Mário Ortiz Ramos e Marcelo Ikeda, o rol de importantes estudiosos do assunto produção, distribuição e exibição no Brasil.

 

Certo, mas voltemos ao livro. Fruto de um trabalho acadêmico, confesso que estou longe de acompanhar o fluxo de embates da política cinematográfica, e, possível, justamente por isso, reputo como sendo notável o empenho da pesquisadora Ana Paula. Coligiu documentos e mais documentos e com eles os embates que a confecção deles geraram. Além da pesquisa com documentos, uma lista impressionante de personalidades entra em cena. Cuidasse o editor de um índice onomástico e de siglas, a edição requereria mais ao menos uma dezena de páginas. 

 

Com tantos documentos, personalidades, siglas a escrita de Ana Paula flui tranquila para um leitor atento e razoavelmente bem informado sobre cinema brasileiro. Longe de perceber as minúcias dos embates, e talvez por isso, vejo em O cinema que não se vê um notável trabalho de uma pesquisadora atenta, cuidadosa, conscienciosa, equilibrada frente a posições antagônicas, e que não esconde ter querido cobrir tudo que envolve tanto de pontos de vista teóricos quanto de disputas de poder. 

 

Nesse ponto, algumas ponderações se fazem necessárias. E elas envolvem em dois momentos procedimentos nas numerosas entrevistas com muitos atores da cena cinematográfica brasileira. Ana Paula possui inegável talento para entrevistar. Como jornalista competente, obter do entrevistado resposta conforme determinado tipo de pergunta seja feita. E aqui, para mim, despontam problemas para um leitor obcecado pela consulta a fontes primárias. 

 

Observo que há um ponto cego no qual se encontram o bom jornalismo e a metodologia científica. A citação de uma fonte numa pesquisa de história, sociologia… remete o leitor ao texto ou ao documento referenciado. É o que dá credibilidade e legitimidade ao trabalho, aos resultados obtidos. A entrevista, as inúmeras entrevistas, no livro entra como fragmento conforme a linha argumentativa desenvolvida por Ana Paula. Numa tese acadêmica, não li a tese, se poderia exigir anexos com as numerosas entrevistas na integra. Com isso, a banca examinadora teria acesso à integra das fontes primárias. Numa edição em livro o editor poderia simplesmente solicitar o corte de anexos. Não contei, mas o número de entrevistas com as quais Ana Paula trabalha compõe parte significativa do livro e da linha argumentativa que exibe. 

 

Mas aqui um nó. Eu, leitor, fico sem a integra das entrevistas. Como decorrência, não tenho como contrapor a linha argumentativa de Ana Paula e eventuais e possíveis amenizações do entrevistado em pontos diversos dos que ela condensou e enfatizou. Sem a fonte primária, a entrevista na integra, um cuidado metodológico numa pesquisa, a credibilidade da narrativa de O cinema que não se vê para mim fica suspensa. Isso, como se não bastasse, num trabalho que descreve infindos embates políticos e múltiplos interesses econômicos em torno do cinema brasileiro, em torno do tripé produção, distribuição e exibição. O subtítulo do livro não pode ser subestimado: a guerra política por trás… 

 

Outra ponderação em outro momento que envolve entrevistas. Jornalista, insisto, Ana Paula adota um cacoete plenamente justificável na ética jornalística: publicar resposta de um entrevistado sob condição de anonimato. Na ética jornalística, preservar a fonte de eventuais retaliações, vinganças, advindas de quem se sentir atingido. Mas, na mesma medida, fazer vir à luz uma informação de interesse público. Não sendo o caso de um interrogatório policial, quem se dispuser livremente a prestar informação a um jornalista sob condição de anonimato presta igualmente um serviço de relevância pública. 

 

Ora, se uma entrevista numa pesquisa acadêmica, e o livro que dela resulta, não tem obviamente feição de interrogatório policial, a se notar igualmente que uma resposta sob condição de anonimato carrega o problema da fonte primária. Em decorrência, como acréscimo à ausência da publicação da entrevista na integra, a suspensão da credibilidade da narrativa. Sob condição de anonimato, o leitor, eu, além de não ter acesso à integra da entrevista também não tenho o nome do entrevistado. 

 

Em síntese: na edição de um livro que tem origem num trabalho acadêmico pode-se, muitas vezes isso é necessário, fazer ajustes, recortes, adequações. O leitor de um não é o mesmo do outro. E o livro, sem meias palavras, entra no jogo do mercado. Um público amplo quem sabe não tenha interesse em bisbilhotar entrevistas e descobrir possíveis contradições numa entrevista. Aceitaria assim, por inércia, a narrativa contada pela autora. Agora, do exuberante trabalho de pesquisa, e de articulação para por em cena tantos entrevistados, esta resenha ficaria pença se eu me eximisse das ponderações aqui realçadas. 

 

Humberto Silva é professor da FAAP, critico de cinema e membro da Abraccine.