“Jamil, fiquei sabendo do seu desligamento. Queria dizer que isso me deixou muito triste, mas que estou por aí para quando quiser tomar um café. Gosto muito de você, não só pelo lado profissional, mas pelas tuas escolhas de vida também, sabe?”. E assim, com a voz doce e emocionada gravada na mensagem de whatsapp, Denise deixou registrado seu último contato falado comigo.
Eu conheci Denise em 2012, na universidade em que trabalhávamos. Tive de apresentar uma aula-teste para ser contratado, e ela fazia parte da banca avaliadora. Na maior parte do tempo, fui dando a aula olhando nos olhos dela. Por esses motivos misteriosos que não sabemos explicar, ela me passava confiança, tinha um quê de pessoa confiável, gente boa.
Passei no teste e me tornei professor da São Judas. Ficava feliz quando via no horário do novo semestre que alguma noite minha coincidia com a presença de Denise na faculdade. Sempre que ela estava, eu dava um jeito de me sentar à mesma mesa. A ela, sempre arrumada, bonita, elegante, nunca faltava bom humor para o engraçado nem bom senso para as questões mais duras da vida.
E assim os anos foram passando na loucura frenética do cotidiano. Tive felizes seis anos ao lado de Denise, com pelo menos um encontro semanal para botar o papo em dia. Só acho uma pena que tenham sido os seis últimos anos de sua vida. Vocês já repararam que, quando conhecemos uma pessoa, passaremos a compartilhar com ela seus últimos anos de vida e os nossos também? Mesmo que a vida nos afaste da convivência, sempre poderemos dizer “eu conheci fulano nos últimos xx anos de sua vida”.
Detesto a ideia de morte repentina, embora muitos achem que é a melhor. Eu discordo! Temo só de pensar que o Opala preto da Próxima Vítima* possa estar à minha espreita na próxima esquina. Quero ter tempo para ver meu filho crescer e sabedoria para escrever um belo romance ou meu haikai**.
Sim, a vida é isso: a certeza da morte que nos espreita e nos espera paciente, com a certeza de que, para ela, nada falhará, ainda que tarde. Por isso é que deveríamos invejar os animais: eles vivem, e vivem, e simplesmente vivem. Como não têm a capacidade de refletir nem de planejar o futuro, nem muito menos sabem da existência da morte, ignoram a advertência de Guimarães Rosa: “viver é perigoso”. E, assim, vivem – simplesmente.
Viver é tão perigoso que até uma ciclista experiente e toda bem equipada e protegida como Denise pode morrer num simples tombo, numa falha qualquer do freio, da pista ou do que quer que seja. A fragilidade humana não faz distinção entre velhos e jovens, não existe uma fila prioritária para o desterro; e, toda vez que penso na morte precoce de Denise, sinto um bolo no estômago, um nó na garganta. As palavras não dão conta de tanta dor.
Neste momento, eu queria ser capaz de escrever um grande romance onírico e poético sobre a morte, ou pelo menos um bom ensaio sobre o fenecer, o deixar de viver, o inexistir; sobre o que a morte é, sobre o que deveria ser, a respeito de como a vemos e do que ela representa para nós que ainda ficamos vivos nesta vida que se assemelha metaforicamente a uma guerra – sim, uma guerra na qual vamos perdendo amigos combatentes pelo caminho, até que um dia seremos inevitavelmente nós o motivo do registro “da baixa”.
Curioso que a morte nada tem a dizer sobre si mesma. Ela simplesmente “é”, sem questionamentos nem elucubrações. A morte não tem nada a dizer sobre si mesma porque só quem sabe da morte são os vivos. Depois que ela nos olha nos olhos, tudo fica com aquele ar de “ausência que se demora, uma despedida pronta a cumprir-se”, como disse Cecília Meireles.
Penso em Denise e me alegro por saber que sua vida foi plena. Uma vida bem vivida, uma vida na qual não havia tempo a perder, tudo era urgente e cronometrado. Tudo ornava, do sapato ao cabelo, das ideias à suavidade da voz; da postura profissional à defesa do seu ofício, que tanto amava. Penso em Denise e me pergunto para onde terão ido seus sonhos? Onde moram, agora, os projetos que não teve tempo de concretizar?
Se eu pudesse falar com minha amiga querida agora, eu lhe diria “Denise, também fiquei sabendo ‘do seu desligamento’. Queria dizer que isso me deixou muito triste, mas que, inevitavelmente, o que aconteceu com você vai acontecer comigo também e com todo mundo. Na verdade, eu queria que o enterro de alguém tão jovem e querida como você tivesse sido apenas mentirinha de primeiro de abril – ainda que sem querer, você estragou o chiste da data, menina levada! Gosto muito de você e gostarei sempre, não só pelo lado profissional, mas pela maneira linda como você viveu sua vida, sabe? Um dia – que eu espero que ainda esteja muito distante por causa do Miguel, do meu romance e do meu haikai – nós nos encontraremos para tomar aquele café que ficou pendente no whatsapp”.
* A Próxima Vítima é uma novela produzida e exibida pela Rede Globo de Televisão no ano de 1995, de autoria de Sílvio de Abreu. Na história policial, um assassino espreitava suas vítimas de dentro de um carro Opala de cor preta. Assim, toda vez que o Opala Preto aparecida, os telespectadores sabiam que alguém seria morto.
** Haikai é um poema curto, de origem japonesa. A palavra haikai é formada por dois termos: “hai” (brincadeira, gracejo) e “kai” (harmonia, realização). Ou seja, representa um poema humorístico. É uma forma poética criada no século XVI e que acabou se popularizando pelo mundo. Apesar de concisos e objetivos, os haicais apresentam grande carga poética.