bola_-_franklin_valverde.jpgFutebol é uma paixão e um forte elemento de identidade nacional. Há povos mais ou menos apaixonados por futebol e aqui, por causa da seleção em copas do mundo e Pelé, mobiliza a vida de muitos. A imensa maioria dos brasileiros homens torce para um time de futebol e boa parte dessa maioria se envolve com o time de futebol de maneira apaixonada. E ainda, parte de dessa maioria apaixonada é capaz de violência quando se trata de seu time do coração. Resquício do machismo de nossa sociedade, homem que não torce para time de futebol é motivo de chacotas e insinuação de que é afeminado.

 

Da sequência acima, desde os oito anos estou entre os que mobilizam parte significativa da vida em torno do futebol. Mas, e com a graça de Deus, não torço para nenhum time de futebol (para realçar ainda: não vejo sentido pejorativo na afeminação). E, apesar de não desconfiar que meus amigos vejam afeminação em mim por causa disso, às vezes me incomodo quando alguém insiste que sou torcedor enrustido. Na verdade, tenho orgulho por não torcer para nenhum time.

Meu fascínio é por ver jogadores por quem tenho admiração. Desde os oito anos me espanto ao ver certos jogadores e suas jogadas maravilhosas e geniais. Como nas artes plásticas, no balé, na música, no Jazz, vejo em alguns jogadores o toque do gênio. E isso verdadeiramente me deixa fascinado. Meu primeiro ídolo foi o Zico. Tenho na memória a estreia dele na seleção em fevereiro de 1976, contra o Uruguai, no Monumental Nuñes, e um maravilhoso gol de falta no fim do jogo que deu a vitória para o Brasil por 2×1. Acompanhei então a carreira de Zico e via, ouvia pelo rádio, jogos do Flamengo no carioca contra o Bonsucesso por causa dele (não nego que por causa disso psicólogos de ocasião vejam homossexualismo no armário rsrs…)

Por causa desse fascínio, hoje fico estarrecido quando vejo situação como a de Dudu, um dos grandes jogadores dos últimos anos no Palmeiras, protagonista em conquistas do time, negociado com o futebol do Qatar e que uma temporada depois pode voltar ao Palmeiras. Estarrecido ao ler sobre as condições de saída e possível volta de Dudu. Ele não foi efetivamente vendido ao Al-Duhail do Catar, mas envolvido numa transação que geraria lucro para o Palmeiras e para o jogador caso a venda fosse de fato concluída.

E aqui para mim o lado escuro da lua. Provavelmente por que viu o quanto ganharia na transação, aceitou a ida ao Qatar e manifestou desejo de sair do Palmeiras, mesmo sendo o maior ídolo do time e não sendo definitivamente vendido (a palavra “vender”, fora do contexto, é terrível, me faz lembrar o tráfico de escravos). Agora, por caminhos sempre obscuros nessas transações, por não ser mais de interesse do Al-Duhail, que obviamente não quer perder dinheiro na negociação (aprendi na física que a quantidade de água que entra num copo é a mesma que sai…), pode, contra a vontade, retornar ao Palmeiras.

Na época em que Zico jogava o futebol tinha um tanto de amador nesse tipo de transação. Era difícil um jogador sair do Brasil para ganhar dinheiro lá fora. Confesso que sinto nostalgia daquele amadorismo. Assim para mim a palavra “profissional”, em se tratando de jogador de futebol, significa “mercenário”. E, pondero, mercenário sem a conotação negativa que essa palavra teve antes das paixões nacionalistas do século XIX. Quer dizer, para mim um mercenário se alista num exército porque fez a escolha que lhe convinha, sem paixão, sem envolvimento patriótico.

E assim, porque numa transação como a que envolve Dudu vejo tão só mercenarismo, se por acaso eu fosse torcedor do Palmeiras jamais o teria novamente como ídolo. Um ídolo que me fez deixar de fazer coisas importantes para vê-lo, um ídolo que me levou a desfazer amizades por causa dele, um ídolo que me emocionou quando vibrava com a camisa alviverde depois de um gol. Como me emocionar com o gol de um jogador que estaria de volta ao Palmeiras contra a vontade, com o sentimento de que perdeu dinheiro na transação, e que seu envolvimento com o time é tão só profissional (mercenário)? Por esse aspecto, ainda que não condene o mercenarismo, pois ele se justifica à medida que o mercenário veja a vantagem que leva, estou do lado da paixão nacionalista do século XIX.

Mas ao não condenar isso não implica que não veja em Dudu, e qualquer jogador em situação similar, um gesto de cinismo extremo beijar a camisa e comemorar um gol quando ele tão só cumpre contrato: é um profissional (bem entendido: cinismo para mim não é ofensa, e tão só constatação de um comportamento). Claro que sou nostálgico e o futebol que conheci não existe mais. E confesso que se hoje o futebol se resumisse ao jogo de transações exclusas com interesses subterrâneos, eu em hipótese alguma perderia meu tempo com futebol.

Felizmente, pelo menos para mim, caso como o de Dudu revela o lado B do futebol, que não difere do lado B da vida. Como o lado B da vida, os interesses no submundo que envolvem Dudu tão só me causam nojo. E com caso assim sigo o que o velho e bom Karl Marx chamava pelo nome de alienação: a paixão pelo futebol nos aliena, ou seja, não reconhecemos nele a forma mercadoria e o quanto o capitalismo é cruel. É nessa condição de alienação, portanto, que hoje vejo futebol, com a expectativa de ver jogadores e suas jogadas geniais. E isso vale para Dudu, no Palmeiras ou no Al-Duhail.

Humberto Pereira da Silva é professor da FAAP, crítico de cinema e membro da Abraccine.

Ilustração: Bola – Franklin Valverde