bergman_-_franklin_valverde.jpgFoi com surpresa que, na faculdade na qual trabalha, encontrou Vicente Jota. Conhecera-o anos atrás, quando ele trabalhava em uma videolocadora. Vicente, com seu estilo descolado de se vestir e jeito antenado e suave de ser, fazia o tipo enciclopédia ambulante de cinema. Na ponta da língua, exibia os créditos de um filme B dos anos 30 feito pela Monogran Pictures, falava sobre uma obscura fita Wuxia de Hong Kong produzida por Tsui Hark, ou recitava a filmografia completa do húngaro Béla Tarr, do qual sempre lembrava de Hotel Magnezit.

 

Queria ele assistir a todos os filmes de Bergman em um mês, no período de férias. Vicente o alertou que, dos primeiros bergman, a Versátil Home Vídeo só havia lançado Crise e Sede de Paixões. Assim, dos 42 bergman, viu naquele mês de janeiro 31: um bergman por dia. Uma experiência singular; assistir a tantos bergman lhe provocou sentimentos não tidos; o mais forte, o do abissal descompasso entre ele e os que estavam em seu entorno. “Sei que foi experiência permitida; sei não ter talvez oportunidade de ver em pouco tempo tantos bergman. O que dizer? O que pude ver? Uma frustração é saber que muitos que me rodeiam, mesmo se pudessem, não se permitiriam uma experiência assim. Bergman, a se levar em conta uma metáfora das regiões escandinavas, é um iceberg a que muitos se contentam apenas com o visível. Há ocasiões em que não fica bem não ter passado os olhos por um ou outro bergman; ou mesmo, há ocasiões em que nas conversas do dia-a-dia, ouço que o cinema de Bergman é sinônimo de chatice, presunção ou coisa parecida. O que sinto, contudo, é que a experiência revelou meu isolamento; minha dificuldade para partilhar uma experiência; há um mundo submerso em que mergulhei; mas é só isso, nada além disso…”. Não consegue dizer sobre o prazer sentido ao traduzir alguns títulos de filmes, algumas frases ditas por personagens, ou até mesmo sobre o caráter de Tomas Ericsson em Luz de inverno. “Há uma mentalidade sueca que perpassa por todos os filmes de Bergman, fortemente acentuada pelo peso da religiosidade protestante luterana; mas, além disso, há algo que me toca bastante em seus filmes: um personagem fala e outro escuta, em silêncio. Não há retorno; há o tempo todo monólogos. Há, sim, a tentativa de se obter resposta; mas todas falham”. Nisso, para ele, o que há de incômodo nos filmes de Bergman: o sentido das palavras é coberto pelas necessidades de sobrevivência; falar sobre Bergman é um profundo nonsense. Bergman não se interessa pelas necessidades da vida, cujos impulsos de sobrevivência ditam o que deve ser dito e entendido. Bergman se interessa pelo sentido das palavras se estas puderem expressar dor e sofrimento. Mas estas, quando sussurradas pelos personagens, encontram apenas o mais profundo silêncio. Depois de ver tantos filmes de Bergman, sentiu como é difícil transpor a barreira que cobre as necessidades de sobrevivência: “Se há algo a se extrair, ou purgar, é que ver Bergman como eu vi tem valor apenas para mim; para as necessidades de sobrevivência, partilhar o esperado vocabulário cotidiano basta; além dele, o silêncio…”. Vicente Jota, sabia ele, se entusiasmava com Bergman, se entusiasmava com filmes de crimes seriais americanos da década de 70… “Você precisa agora ver Helter Skelter, dirigido pelo John Gray, e tem antes a versão do Tom Gries – a seita do Charles Mason…; o Gries fez Hell´s Horizon, sobre a guerra da Coreia; a guerra nem tinha ainda acabado, é de 55, tem o Chet Baker, o trompetista, no cast, e ele morre…”, lhe disse, como sempre enciclopédico, Vicente, no dia da devolução de Bergman.

 

Ilustração: Bergman – Franklin Valverde